As nuvens não são o céu

Mt. Fuji above billowing clouds

“Minha visão de mundo, devo reconhecer é bastante egocêntrica. Eu me vejo como ponto central e acho, em meu ofuscamento, que tudo só gira ao meu redor. Isso mostra que é preciso uma ‘mudança de Copérnico’ em minha vida. Pois enquanto eu me considerar como ponto central, deixarei de ver o verdadeiro centro.

Há muitos séculos, conta-se que um rei pintou uma linha negra na parede e chamou seus sábios:
– Vocês estão vendo alguma possibilidade de reduzir essa linha, sem tocar nela?

Os sábios ficaram muito confusos. Ficaram pensando por um bom tempo, mas não encontraram nenhuma solução. Até que finalmente um deles se aproximou, pegou o pincel e desenhou uma outra linha, bem mais longa, sobre a linha do rei. Sem tocar na linha do rei, o sábio conseguiu deixá-la visivelmente menor.

É essa a mudança de Copérnico, que eu citei acima. Quando percebo que me considerei importante demais, não preciso me diminuir de propósito. Mas preciso saber que há algo maior do que eu. Preciso descobrir a grande linha.

É disso que trata a religião. A religião é a transposição de limites, ela abre novos horizontes e leva à amplitude. Ela indica o céu que está sobre mim. Esse céu é o pano de fundo infinito, irremovível, de tudo o que existe. As nuvens vêm e vão, as constelações passam, mas o céu permanece, iluminado, calmo e claro.

Da mística eu aprendi que o céu não está apenas sobre mim. O lama tibetano Sogyal Rinpoche vê nele uma imagem da ‘verdadeira natureza’ do ser humano, da sua essência mais interior. Mas muitas vezes ele fica encoberto pelas nuvens do espírito confuso. Então aquele que o observa de baixo, acha que as nuvens são a única realidade. Mas quem viaja de avião e atravessa a cobertura de nuvens, descobre a amplitude sem limites do céu claro e azul. Dessa perspectiva as nuvens passam a ser apenas formas pequenas, insignificantes, que não tem estabilidade e nenhum significado importante. Sogyal Rinpoche diz que:
– Deveríamos sempre tentar nos lembrar que as nuvens não são o céu. As nuvens se formam e se desfazem depois. Suas formas e cores se modificam. Em sua impermanência e ausência de estabilidade elas são um refluxo da própria vida. Porém não devem ser comparadas ao céu. As nuvens estão no céu, mas não são o céu.

Em sua infinita grandeza e clareza o céu indica aquela dimensão transcedental que ultrapassa o vai-e-vem dos tempos. Ele mostra que há coisas mais importantes e maiores do que as nossas próprias pequenas atribulações e problemas. Ele me convida e me perder no interior da sua amplitude, para depois me reencontrar. Ele forma a grande linha sobre a pequena linha da minha vida.

E ao mesmo tempo eu tento ficar firme, de pé no chão, com minhas duas pernas. Sem exaltações celestes, sem tempestades celestes. Meu lugar é aqui na terra, não é em nenhum outro lugar.

Assim eu vou trilhando o meu caminho com a consciência de que existe um grande firmamento que se estende sobre mim – sabendo que esse céu também se reflete dentro de mim. E aos poucos eu começo a entender que não sou o ponto central. O mundo não gira ao meu redor. Existem dimensões que me ultrapassam. Isso não me torna pequeno, mas modesto. Minha estória pessoal é parte de uma história infinita. Uma pedrinha de um mosaico num painel sem limites.”

Lorenz Marti em “Como um místico amarra seus sapatos”.

Capa do livro.