«Eles têm olhos mas não vêem.» Jeremias 5.21
«Abre os olhos e olha, verás o teu rosto em todos os rostos.
Tem atenção e escuta, ouvirás a tua própria voz em todas as vozes.»
Khalil Gibran in Areia e Espuma
“O meu amigo, o cirurgião Dr. Durix, especialista em oftalmologia, dizia-me que existia na Amazônia um peixe com quatro olhos; o Anableps anableps. Este peixe tem dois olhos e cada um dos seus olhos tem duas pupilas, uma superior e outra inferior. Desloca-se sempre à superfície da água, ficando o nível desta a meio dos olhos. Com a parte superior ele vê o que se passa na atmosfera, tal como o homem e os outros animais terrestres e, com a parte inferior, vê o que se passa na água, debaixo da superfície, como os outros peixes e animais aquáticos.
O Dr. Durix dizia que tudo está preparado neste olho: as curvaturas da córnea, as curvaturas do cristalino, a própria forma do olho em si, para se adaptar às diferenças de refracção entre o meio exterior e o meio aquático. Este é, assim, um olho de imagem global.
Esta descrição de um olho quase perfeito fez-nos pensar, a Claude Durix, Pierre Delorme e a mim mesmo, que esta seria a visão ideal para todos nós. Nas artes marciais (Budo) e também no Yoga, a visão de certas grandes organizações ou mesmo grandes federações, não fica senão por regulamentos técnicos ou regulações governamentais, por vezes limitados a interesses pessoais. A maior parte de nós, muito frequentemente, não se orienta para a vida. Sobrevoamo-la, dizia Chiara Lubich, e é assim que se perdem as virtudes destas artes.
As artes marciais seguiram felizmente a evolução do mundo. Sabemos que as suas origens se perdem na noite dos tempos onde os homens combatiam para sobreviver. A sua razão de ser inicial perdeu-se felizmente… No Japão como na Índia, transcendeu-se o combate para, em seu lugar, criar uma Via orientada para valores espirituais que transformaram as técnicas brutais numa Arte cujo objectivo é a busca de si mesmo. Todas estas técnicas se tornaram assim num suporte de meditação. Este combate tornou- se puramente espiritual ao tomarmos consciência de que o verdadeiro inimigo éramos nós próprios, na ilusão do ego que nos impede de ver a nossa verdadeira natureza. O sabre e a meditação não são mais do que uma só coisa, «ken zen ichi nyo». O Budo tornou-se uma arte de não-violência, procurando a paz e a serenidade, dando um verdadeiro sentido à vida.
Hoje em dia devemos estar atentos. Devemos olhar para a mundialização, que tem um lado positivo mas também um negativo, que se apropriou destas artes marciais, tal como da via do Yoga, para as mediatizarem e comercializarem, desvirtuando infelizmente o seu verdadeiro espírito, amplificando o lado primário e complexo do homem — com todas as suas aspirações e a agressividade que vem da violência original, quer dizer a violência das origens e do medo do outro. Hoje em dia devemos vencer o outro a qualquer preço.
Se as artes do Budo são feitas deste laço ancestral que liga o Homem à violência, elas souberam no entanto, com inteligência, durante o seu longo percurso, harmonizar esta difícil relação pela observação necessária para a aquisição de um gesto correcto, através do físico e do mental, que exige tomadas de consciência de si, mas também do outro. Isto é muito necessário ainda hoje pois infelizmente não resolvemos o problema da agressividade e da violência. A violência pode perfeitamente deslocar-se. Ela é móvel, na prática como nos estádios… ou no mundo, através das guerras perpétuas que conhecemos demasiado bem.
Devíamos tomar consciência de uma maneira mais profunda de tudo isto. Não fiquemos pela superfície das coisas, dos acontecimentos. Sejamos como o Anableps anableps… Tomemos consciência do externo e do interno, do visível e do invisível. A profundidade está ligada ao olhar que lançamos sobre o nosso ser autêntico em cada instante da vida.
Não devemos esquecer que durante a pratica o Dojo não é um lugar para pensadores. A prática é sobretudo feita de alegria e o resto segue o seu curso. Se o apelo do silêncio ressoa em nós, então podemos harmonizar a sensação, o sentimento, na experiência de estar presente na Presença. Não é isto a incarnação do movimento que nos quer ensinar a Via?
A harmonia do corpo e do espírito não é um conceito nem uma técnica de aperfeiçoamento inventada. É um princípio essencial de nossa qualidade de se ser humano. Um princípio que nos permite coordenar as nossas percepções sensoriais, o nosso corpo e o nosso espírito. Estar em harmonia connosco mesmos é também reatar a nossa ligação ao universo, ao mundo, ao outro, aos outros…”
Não esqueçam o olhar do Anableps anableps…!
Georges Stobbaerts, Outubro de 2010.