Ensinar é um gesto de amor

Georges Stobbaerts, fundador da escola TenChi International.

O papel do Sensei (professor) é insubstituível. É ele quem deve despertar, no aluno, o gosto da procura e mantê-lo. O caminho que o aluno percorre está repleto de obstáculos. Frequentemente, tem a tentação de parar a meio do caminho, pois julga já ter compreendido tudo e chegou ao seu termo ou, então desencoraja-se quando das primeiras dificuldades.

“A flor, durante o seu crescimento, esforça-se por se alimentar, luta para sair da terra e desabrochar.”

Ensinar é criar uma dinâmica que conduza o praticante ao movimento, no prazer da descoberta e, em seguida, no prazer da procura. É gerar um clima na partilha e na transmissão daquilo que se ama, orientando o aluno para a autonomia que é dada pelo estudo, compreensão e corporalização das técnicas, enquanto ator e não consumidor.

“Ensinar não é encher uma taça, é atear um fogo.”

Grandes mestres sempre respeitam uma das mais importantes regras das artes do Buda: o Silêncio. Quando se executa um movimento, ele desenha no espaço uma simbólica que não se pode desvelar…, esta não pode ser inscrita num método ou numa escola, pois os símbolos estão inscritos no homem e cabe a ele revelá-la por meio da sua prática. Os gestos respondem a uma ciência da energia que molda o espírito. O silêncio, o não estar sempre a explicar, convida o praticante a procurar por si e em si mesmo. A não compreensão apela à experiência, único meio de Conhecimento.

Hoje, a educação consiste em explicar. Ela intelectualiza-se e o aluno “recebe pela cabeça” e não pela totalidade do seu corpo. Na arte do movimento, o não verbal é muito importante, embora também haja espaço para a palavra.

O sentido profundo do ensino, direi mesmo, a sua essência é nada! Pois trata-se de entrar no nada e libertar o espírito para mergulhar no Vazio que vai abrir as portas para uma verdadeira sabedoria interior. É uma pedagogia que nos leva a mergulhar na experiência, de modo a que esta seja assimilada pelo corpo. Para observar um movimento é necessário abrir o corpo. Quanto mais o aluno conseguir abrir as suas “portas” mais o professor pode dar, ensinar.

Questionado sobre a técnica, um professor deverá tentar explicar o papel que esta representa na arte do movimento, pois, aqui, não se trata de desempenho ou “performance”. De que é que serve falar da técnica, da Beleza do movimento, se não for para tentar, através dos mesmos, levar o homem ao melhor de si mesmo? Para isso, é preciso voltar ao essencial, ou seja, à relação que une os seres.

Se a prática das técnicas não for feita mecanicamente, origina aprofundamentos progressivos, em forma de pensamento “espiralado”, onde algumas repetições inevitáveis são extremamente ricas devida à troca e ao diálogo entre o espírito e a técnica. A prática deveria permitir-nos encontrar uma sabedoria instintiva do corpo, uma pacificação e uma não violência do pensamento. Estes princípios da não violência nasceram no espírito de alguém que, um dia ao observar os ramos de um pinheiro, constatou que estes se quebravam sob o peso da neve, enquanto simples bambus, mais fracos, mais flexíveis, saíam vitoriosos desta prova. Está flexibilidade e esta não resistência são as bases da arte do movimento, principalmente das artes do Budo.

Frequentemente, somos “quebrados” pelas circunstâncias, pois resistimos à lei da vida. Deixamos de estar adaptados. Já não possuímos a calma, a flexibilidade física nem a agilidade mental desordenada que nos permitam responder adequadamente às circunstâncias. A atividade mental desordenada e a imaginação demasiado fértil separam-nos do mundo exterior. Perdemos o rasto da sabedoria instintiva. Numa prática levada a cabo com vigilância, observa-se aquilo que vai provocar ou redescobrir os reflexos corporais adormecidos de uma sabedoria instintiva religada à natureza profunda de todas as coisas e do seu próprio ser.

“Nunca nada está acabado, nunca nada é adquirido.”

Na prática, não nos devemos deixar levar pela rotina. O movimento não se insere no automatismo, ele é sempre novo. Se achamos que adquirimos algo, regredimos. Isso é verdadeiro para o movimento, o amor, para a vida em geral. O aluno deve estar sempre disponível e colocar-se em questão, caso contrário, instala-se a rotina e estaciona. A via é uma corrente de água viva. Deixemo-nos levar por esta corrente, sem procurar abrigo nas margens do nosso egoísmo, sem procurar agarramo-nos às raízes emergentes dos nossos desejos. Mergulhemos nesta água sempre pura e renovada, permitindo que a sua corrente nos conduza em direção a novos mundos. Se permanecermos nas margens, imobilizamo-nos.

Ensinar não é impor uma imagem de si mesmo, mas sim criar múltiplas situações de experimentações e de questionamento que vão dar um sentido à prática: o que é que permite o movimento? O que é que o anima, o justifica? O que é um movimento coerente, verdadeiro? Aonde é que ele nos conduz? O movimento é veículo da beleza, espiritualidade, energia (ki), amor ou da própria vida? O ensino propõe chaves, permite construir pontes, abrir portas e criar possibilidades, participando, assim, na Transmissão.

Chegará um dia em que o professor não estará mais presente fisicamente. É necessário que deixe aos seus alunos sementes essenciais, tais como, mensagem de harmonia, paz e amor. Por outro lado, o aluno deverá passar a “tocha” às novas gerações de modo a não deixar extinguir a mensagem universal da arte do movimento. Esta mensagem veicula valores universalmente reconhecidos: respeito pelo outro; ação justa; resolução de conflitos por meio do diálogo; esforço de compreensão do outro; trabalho sobre si mesmo; eliminando progressivamente a afirmação egóica.

A arte do movimento é uma via a seguir com o intuito de metamorfosear as intenções voluntárias em trabalho de construção ou de reconstrução do corpo e da alma. O movimento é um processo de procura, de exploração da consciência através do corpo e graças ao seu suporte. Criar movimentos centrados, bem posicionados com a única intervenção dos princípios motores elementares, como por exemplo, deslocar-se no espaço, elevar os braços, rodar a anca, levantar o corpo e baixá-lo leva o praticante a encarar a sua existência numa perspectiva harmoniosa.

À semelhança da música que nos entra pelo ouvido (mas não só!) propagando-se até ao mais profundo do nosso ser, fazendo, aí, vibrar a corda sensível, a arte do movimento, com os anos de prática, enriquece-nos em profundidade, tornando-nos sensíveis à escuta da nossa alma. E o local de prática (Dojo) é o espaço onde se criam as condições para que todos possam progredir.

Há muitos anos, escrevia: “o principal é continuar”. No início da prática, é a alegria da descoberta, mais tarde, esta pode tornar-se fonte de dificuldade e de interrogação que são desafios a ultrapassar, tais como: a ferida do ego; o professor é uma interpelação permanente através do movimento; a extrema simplicidade e a grande complexidade do movimento e o caráter não repetitivo do ensino, mesmo repetindo, frequentemente, os mesmos movimentos.

Em relação ao continuar, claro que por vezes é necessário um distanciamento. “Continuar” não é praticar de uma maneira rígida. Por vezes, é necessário praticar com uma intensidade particular. A continuidade não é monotonia, mas sim renovação da prática por meio do seu aprofundamento. O praticante pode tocar uma pequena parcela do movimento verdadeiro que irá frutificar através de uma constante procura do gesto verdadeiro e escutando a sua voz interior. A arte do movimento é uma via de harmonia, de fusão e de encontros sublime entre corpo e alma.

Livro escrito pelo mestre e fonte do texto acima.

O céu e o inferno

Um Samurai grande e forte, de índole violenta, foi procurar um pequenino monge…

– Monge – disse numa voz acostumada à obediência imediata. Ensina-me sobre o céu e o inferno!

O monge miudinho olhou para o terrível guerreiro e respondeu com o mais absoluto desprezo:

Ensinar a você sobre o céu e o inferno? Eu não poderia ensinar-lhe coisa alguma. Você está imundo. Seu fedor é insuportável. A lâmina da sua espada está enferrujada. Você é uma vergonha, uma humilhação para a classe dos samurais. Suma da minha vista! Não consigo suportar sua presença execrável.

O samurai enfureceu-se. Estremecendo de ódio, o sangue subiu-lhe ao rosto e ele mal conseguiu balbuciar palavra alguma de tanta raiva. Empunhou a espada, ergueu-a sobre a cabeça e se preparou para decapitar o monge.

– Isto é o inferno – disse o monge mansamente.

O samurai ficou pasmo. A compaixão e absoluta dedicação daquele pequeno homem, oferecendo a própria vida para ensinar-lhe sobre o inferno! O guerreiro foi lentamente abaixando a espada, cheio de gratidão, subitamente pacificado.

– Isso é o céu- completou o monge com serenidade.

As sete virtudes do samurai.

Pintura de Miyamoto Musashi
Pintura retratando o famoso samurai Miyamoto Musashi.

Com o passar do tempo e a modernização da civilização, os valores humanos mudam cada vez mais para tentar suprir a necessidade de uma formação acadêmica composta de um certo excesso de informações para um bom posicionamento em áreas profissionais. O crescimento pessoal deixa de lado os valores transmitidos através da convivência humana e o homem passa a retrair-se em seus lares, deixando assim de compartilhar emoções e experiências inter-pessoais com o mundo exterior. Devido a esta falta de tempo para convívio familiar, vivemos em um mundo onde a transmissão de conhecimentos e vivências de pai para filho torna-se esquecida e até mesmo obsoleta. Sempre sufocado em seus prazos, o homem moderno torna-se individualista e recluso.

O mesmo ocorre no contexto das artes marciais onde, até mesmo no Japão, o ensinamento mestre/discípulo se deteriora através da comercialização de diplomas. As escolas de artes marciais passam a ser empresas bem sucedidas que crescem através da formação de alunos despreparados, que depois de alguns poucos anos de práticas tentam transmitir experiências pelas quais ainda não passaram. É comum encontrarmos praticantes já graduados e que fazem uma saudação ao entrar no tatame, no cerimonial ou após praticar com outras pessoas sem saber seu significado, tornando-a assim um gesto vazio e sem vida. Sempre preocupado com os valores da etiqueta, o mestre Georges Stobbaerts escreveu o livro Reigi, publicado em 2000 pela editora TenChi. Na minha opinião, uma literatura obrigatória para todos os praticantes, não apenas de Aikido, que procuram o verdadeiro sentido da prática. Com o mestre Stobbaerts, aprendi que o programa técnico é apenas um suporte, obviamente com sua importância, ao início de um longo aprendizado e que além dele existem várias outras variáveis que influenciam a experiência no tapete. Também aprendi que existe um mundo extra tatame, no qual posso e devo levar tudo que estou aprendendo para ele. Externar a prática para o dia-a-dia não significa distribuir socos e pontapés para todos os lados. Significa ter a mínima compreensão de algumas virtudes e trazê-la para o cotidiano:

  • Yuuki (勇) – Coragem, Valor, Bravura: para enfrentar as dificuldades encontradas;
  • Jin (仁) – Humanidade, Misericórdia, Benevolência: para ajudar outras pessoas;
  • Gi (義) – Justiça, Retidão, Integridade: para escolher o caminho a ser seguido;
  • Rei (礼) – Etiqueta, Cortesia, Civilidade: para me relacionar e conviver harmoniosamente com outras pessoas;
  • Makoto (誠) – Sinceridade, Honestidade, Realidade: para contribuir com o crescimento pessoal de si próprio e dos outros que nos cercam;
  • Chuugi (忠義) – Lealdade, Fidelidade, Devoção: para que as pessoas possam confiar sempre que precisarem;
  • Meiyo (名誉「名譽) – Honra, Credibilidade, Glória; também Reputação, Dignidade, Prestígio: para respeitar e ser respeitado nas decisões tomadas.

O que poucas pessoas sabem é que estas virtudes estão também diretamente ligadas a vestimenta nas artes marciais. Cada arte possui seu Keikogi (稽古着; keiko = treinamento; gi = roupa), apropriado e indispensável para sua prática. A palavra Keikogi ou Keikogui (稽古衣) é comumente substituída pela palavra Gi (着 ou 衣), o que não é correto já que esta segunda por si só não representa o mesmo significado. Uma substituição correta seria Dogi (道着) que significa “uniforme usado no caminho escolhido”, onde pode-se colocar o nome da disciplina praticada no lugar de “do”, obtendo-se assim o significado exato de dogi:

  • Aikidogi (合気道着 ou 合気道衣, uniforme utilizado no Aikido);
  • Kendogi (剣道着 ou 剣道衣, uniforme utilizado no Kendo);
  • Judogi (柔道着 ou 衣, uniforme utilizado no Judo);
  • Jujutsugi(柔術着 ou 柔術衣, uniforme no jiu-jitsu);
  • Karategi (空手着 ou 空手衣, uniforme no Karate);

O dogi não é apenas uma vestimenta a ser utilizada nos treinos. Existe todo um simbolismo próprio em relação a ela mesma, aos princípios do Budo, das virtudes dos samurais e da arte marcial praticada. A roupa usada na prática do Aikido é composta pelo casaco (wagi) e calça (shitabaki) brancas e uma faixa, também conhecida como obi, que ajuda a fechar o casaco. Algumas escolas adotam o sistema de faixas coloridas kyu/dan elaborada pelo mestre Jigoro Kano, criador do Judo, enquanto outras utilizam o sistema mais tradicional, apenas com as faixas branca e preta. Diversos autores e mestres citam as faixas coloridas (kyus) como um caminho até a aceitação do praticante como aluno da escola ao receber o diploma de faixa preta (dan). O mestre Stobbaerts, em uma conversa pessoal, definiu-me este sistema de uma forma bem mais acolhedora citando os kyus como os níveis de compromisso dos alunos com a escola bem como a preparação do mesmo para o início do aprendizado mais profundo. Como poucas pessoas sabem, atingir a graduação de primeiro dan (shodan), não significa receber um certificado de conclusão, e sim marcar a passagem de transição de uma preparação para o início do verdadeiro aprendizado. O aluno passou pelas fases preparatórias iniciais do corpo e da mente e esta apto a iniciar seu caminho na disciplina. O mesmo vale para as outras graduações, seja ela qual for, ela representa a transição entre fases de aprendizado.

Outra peça que compõe o aikidogi é o hakama. Muitas vezes confundido com uma saia, o hakama utilizado atualmente na prática das artes marciais é uma calça folgada e pregueada também conhecida como joba hakama. Originalmente elaborada para proteger as pernas dos cavaleiros samurais contra ferimentos causados por arbustos e galhos enquanto cavalgavam, sua utilização ajudava a identificar os guerreiros perante a população japonesa antiga. Alguns pesquisadores defendem também que esta vestimenta servia para esconder os pés em duelos e batalhas, impossibilitando a previsão de um ataque caso o oponente conhecesse o estilo de combate da outra escola.

Na prática do aikido, sua utilização varia de escola para escola, podendo ser utilizado desde o primeiro dia de prática do aluno ou apenas por aqueles que possuem a graduação de shodan em diante (yudansha). Inicialmente, não haviam restrições quanto a cor do hakama. Devido a falta de recursos financeiros muitos alunos do Mestre Morihei Ueshiba(植芝盛平 Ueshiba Morihei), fundador do Aikido, confeccionavam suas próprias calças com o tecido mais resistente que conseguiam adquirir. Muitos deles eram feitos em cores pouco convencionais, como verde e vermelho, o que levou O-Sensei a padronizar seu uso nas cores preta ou azul escuro para os alunos e reservado a cor branca para uso pessoal ou por futuros grandes mestre da arte. Nas costas do hakama, o nome do praticante é geralmente colocado do lado direito, bordado em japonês com kanji chinês, ou sinais de katakana japonês nas cores laranja intenso ou amarelo. A peça também é composta pelo koshiita, que situa-se na parte lombar ajudando a manter a vestimenta na posição correta e melhorando assim a postura do praticante, e do himo que são as tiras ou faixas para amarração (ushirohimo: tiras curtas e posteriores; maehimo: tiras compridas e frontais).

Hakama com nome do praticante bordado.

Outra característica bastante marcante desta peça e que exige um cuidado especial são seus vincos ou dobras, chamados de hida. Além de tornar o hakama visualmente atraente por sua beleza, esses vincos possuem significados bem mais amplo perante a sociedade japonesa, cultura samurai ou arte marcial praticada, pouco conhecido até mesmo pelos próprios yudansha. No total de sete dobras, cinco na parte da frente (yosehida) e duas na parte de traz (ôhida), elas podem também representar as virtudes do samurai, como já citadas no início do texto. As grandes dobras também são conhecidas, em alguns contextos, por representar a consolidação das cinco virtudes (五徳 gotoku) representadas pelas pregas frontais. De acordo com alguns testemunhos e documentos antigos, o ato de dobrar o hakama pelos samurais era um ritual de confirmação de seu Do (道 caminho). Ao dobrar seu hakama, o verdadeiro samurai, conhecedor e seguidor das sete virtudes, refletia sobre a sua vida e verificava se estava trilhando o caminho correto.

Vincos frontais do hakama.

O livro Memórias do Grande Mestre (Ô Sensei Morihei Ueshiba) da editora Pensamento relata uma lição do Mestre aos seus alunos sobre o hakama. Nele, Mitsugi Saotome, uchi deshi de Ô Sensei durante quinze anos e instrutor do Aikikai Hombu Dojo até a morte do fundador em 1969, cita sua experiência ao esquecer o seu hakama e tentar entrar no tatame para treinar:

Quando eu era uchi deshi de Ô Sensei, todos deveriam usar hakama nos treinos. Desde a primeira vez. Não havia restrições ao tipo de hakama que você usasse; por isso o dojô era um lugar tão colorido. Eu vi todos os tipo de hakama, desde os mais simples aos mais sofisticados e caros. Havia gente usando hakama de Kendo, hakama próprio para dança e hakama de seda – chamados de sendai hira. Eu ficava imaginando aqueles estudantes persistentes, que faziam o diabo para pegar emprestado o hakama de seus avós; exatamente aqueles feitos para ocasiões especiais e cerimônias, estragando-os na prática de suwariwaza.

Eu lembro vividamente do dia em que eu esqueci o meu hakama. Eu já estava me preparando para entrar no tatame usando só o meu dogi (keikogi), quando Ô Sensei me parou. ‘Onde está o seu hakama?’, perguntou rispidamente. ‘O que o faz pensar que pode receber instruções do seu mestre usando só roupas de baixo? Você não tem senso de decoro? Obviamente, está lhe faltando a atitude e etiqueta necessária para alguém que segue o caminho e os ensinamentos do budô. Sente-se ali, e apenas assista a aula!’ Esse foi apenas o primeiro de muitos sermões que eu recebi de Ô Sensei. Contudo, minha ignorância naquela ocasião chamou atenção de Ô Sensei para que ele desse uma aula, para todos os uchi deshi, sobre o significado do hakama. Ele explicou que o hakama era um traje para os estudantes do kobudô (o budô tradicional) e perguntou se havia alguém, dentre nós, que sabia o significado das sete dobras do hakama. ‘Elas simbolizam as sete virtudes do budô”. Ô Sensei disse: “elas são jin (benevolência), gi (honra), rei (cortesia), chi (sabedoria), shin (sinceridade), chu (lealdade) e koh (compaixão). Nós encontramos essas qualidades nos samurais do passado. O hakama nos leva a refletir a natureza do bushidô. Vesti-lo simboliza as tradições que nos foram passadas de geração em geração. O aikido nasceu do espírito do bushidô e, através da prática, devemos nos esforçar ao máximo para lapidar essas sete virtudes tradicionais.‘”

Este e outros textos sobre os princípios do Aikido também podem ser encontrados no livro “The Principles of Aikido”, escrito pelo próprio Saotome.

Portanto, é importante manter viva esta tradição, não se deixando apanhar pelo corre-corre da vida moderna ou até mesmo pelo automatismo através da repetição. Aproveite este gesto, que deve ser realizado após o término de cada aula, como um momento de reflexão e meditação.

A Harmonia do Amor

Morihei Ueshiba, criador do Aikido.

“O Aikidô nada mais é que a manifestação das obras do amor. O amor dá forma ao universo e purifica todas as coisas. O universo lança as sementes das quais todas as coisas nascem; contém o poder infinito que as alimenta e permite que elas prosperem. Dei o nome de Aiki às múltiplas leis do universo, oriundas do amor, que governam o destino da complicada tapeçaria da vida, à medida que ela vai sendo tecida neste mundo. Cumprir a missão da compaixão universal na terra, proteger e cultivar todas as coisas da natureza, eis a tarefa do Aikidô.

Qual é a fonte da materialização da vida no universo? A expressão do Espírito Infinito e do amor. O Aikidô é uma expressão pura dessa fonte. Ele é o caminho original para a abençoada harmonia da humanidade com o universo. Somente se seguirmos o princípio Aiki da unidade com Kami e devolvermos a humanidade ao equilíbrio com todas as coisas, só assim seremos parte do infinito crescimento rumo à perfeição. Promover o fim da malícia e do sofrimento é a missão que nos foi confiada pelo universo.

As formas reais do universo revelam-se no corpo humano. Temos de começar a ver o universo dentro de nós e acordar para os princípios do equilíbrioe do amor, princípios sagrados que recebemos do universo. O universo se desdobra num mosaico sem fim de variadas formas – cada qual um aspecto diferente de sua plenitude, cada qual em equilíbrio com as demais. Assim como o universo exprime amor de diferentes maneiras, nós precisamos exprimir por meio de nossa própria vida o equilíbrio dinâmico e a harmonia do universo em todas as nossas relações. Graças a esse processo o proprio universo penetrará no corpo e no espírito humano, dando-lhes alimento e poder verdadeiro.

Todas as coisas do universo provêm de uma única fonte, de uma única energia criadora. Tudo no mundo é expressão desse amor universal. O coração do universo pulsa em harmonia com toda a criação e curva-se em reverência diante de todas as suas glórias. Cada um deve se esforçar para compreender esse ritmo e sentir o coração do universo, que dá nascimento à harmonia do equilíbrio perfeito. A missão do Aikidô segue o caminho absoluto do amor universal. Seus ensinamentos são os ensinamentos de Kami. Seus princípios são as leis da harmonia e do equilíbrio em todos os elementos, na criação da vida na terra. Seu objetivo é juntar-se ao coração do universo e disseminar o amor.”

Texto de uma das palestras de Morihei Ueshiba retirado do livro Aikido e a Harmonia da Natureza, escrito por Mitsugi Saotome.

Caminhar é uma arte marcial

Gozo Shioda, aluno direto de Morihei Ueshiba que atingiu o 10º dan.

“Ueshiba Sensei costumava nos explicar que ‘O Aikido e a vida são uma coisa só’. O Aikido não se resume a ir ao dojo e executar técnicas uns nos outros . Qualquer uma de nossas atividades diárias é um treinamento de Aikido, seja caminhar, dar um passeio, conversar com as pessoas, beber ou ir para a cama. Sensei também dizia, ‘Caminhar é uma arte marcial’, o que quer dizer a mesma coisa.

As artes marciais não devem ser isoladas de nossa vida diária a ponto de se tornarem algo especial. Mesmo que você esteja apenas caminhando na rua, a sua presença, a sua postura, sua consciência, todas essas coisas são expressões do riai, dos princípios fundamentais. Repito, trabalhar tudo isso faz parte do treinamento. Se você estiver em conformidade com os princípios fundamentais, eles terão harmonia. Sua postura, seu porte, a maneira como você cumprimenta as pessoas, o modo como se expressa – a harmonia reside em cada uma dessas coisas. Caminhar em harmonia é de fato uma aplicação do kokyu e da energia focada.

Não se trata de força ou fraqueza. Budo é sempre procurar dar o melhor de si mesmo. Caso contrário, nossas artes marciais se transformariam em esportes. Esportes você pratica para competir. Você pratica para ganhar torneios e, no dia do campeonato, você chega ao auge do seu condicionamento físico. O fato de você conseguir fazer aquilo de que normalmente não é capaz é de fato magnífico.

Entretanto, para chegar ao auge num momento específico é preciso fazer um esforço excessivo, tanto mental quanto físico. Durante um período restrito de tempo isso pode funcionar. Mas as pessoas não conseguem se manter o tempo todo sob esse tipo de pressão. Por isso os atletas se aposentam.

Nas artes marciais pensa-se de modo diferente. Manter as melhores condições todos os dias é o princípio básico das artes marciais. Não é bom atingir condições espetaculares em um determinado dia, só porque se está preparado, e em outro dia não conseguir mais. Forçar-se a conseguir algo que na realidade não está dentro de você só serviria para colocá-lo numa situação insustentável. Fazer o melhor possível significa obter um resultado dentro dos limites de sua habilidade. Independentemente da situação, você só conseguirá fazer algo na vida real se conseguir manifestar o que há de melhor em você sem coerção, sem se forçar.

Shugyo, ou treinamento intensivo, é manifestar o melhor de si em cada momento, em qualquer situação. Eis porque o treinamento do Aikido não tem fim. Ele é a perpetuação do desejo de melhorar ao longo de toda a sua vida.”

Texto retirado do livro Aikido Shugyo, Harmonia no Confronto, escrito por Gozo Shioda.

As nuvens não são o céu

Mt. Fuji above billowing clouds

“Minha visão de mundo, devo reconhecer é bastante egocêntrica. Eu me vejo como ponto central e acho, em meu ofuscamento, que tudo só gira ao meu redor. Isso mostra que é preciso uma ‘mudança de Copérnico’ em minha vida. Pois enquanto eu me considerar como ponto central, deixarei de ver o verdadeiro centro.

Há muitos séculos, conta-se que um rei pintou uma linha negra na parede e chamou seus sábios:
– Vocês estão vendo alguma possibilidade de reduzir essa linha, sem tocar nela?

Os sábios ficaram muito confusos. Ficaram pensando por um bom tempo, mas não encontraram nenhuma solução. Até que finalmente um deles se aproximou, pegou o pincel e desenhou uma outra linha, bem mais longa, sobre a linha do rei. Sem tocar na linha do rei, o sábio conseguiu deixá-la visivelmente menor.

É essa a mudança de Copérnico, que eu citei acima. Quando percebo que me considerei importante demais, não preciso me diminuir de propósito. Mas preciso saber que há algo maior do que eu. Preciso descobrir a grande linha.

É disso que trata a religião. A religião é a transposição de limites, ela abre novos horizontes e leva à amplitude. Ela indica o céu que está sobre mim. Esse céu é o pano de fundo infinito, irremovível, de tudo o que existe. As nuvens vêm e vão, as constelações passam, mas o céu permanece, iluminado, calmo e claro.

Da mística eu aprendi que o céu não está apenas sobre mim. O lama tibetano Sogyal Rinpoche vê nele uma imagem da ‘verdadeira natureza’ do ser humano, da sua essência mais interior. Mas muitas vezes ele fica encoberto pelas nuvens do espírito confuso. Então aquele que o observa de baixo, acha que as nuvens são a única realidade. Mas quem viaja de avião e atravessa a cobertura de nuvens, descobre a amplitude sem limites do céu claro e azul. Dessa perspectiva as nuvens passam a ser apenas formas pequenas, insignificantes, que não tem estabilidade e nenhum significado importante. Sogyal Rinpoche diz que:
– Deveríamos sempre tentar nos lembrar que as nuvens não são o céu. As nuvens se formam e se desfazem depois. Suas formas e cores se modificam. Em sua impermanência e ausência de estabilidade elas são um refluxo da própria vida. Porém não devem ser comparadas ao céu. As nuvens estão no céu, mas não são o céu.

Em sua infinita grandeza e clareza o céu indica aquela dimensão transcedental que ultrapassa o vai-e-vem dos tempos. Ele mostra que há coisas mais importantes e maiores do que as nossas próprias pequenas atribulações e problemas. Ele me convida e me perder no interior da sua amplitude, para depois me reencontrar. Ele forma a grande linha sobre a pequena linha da minha vida.

E ao mesmo tempo eu tento ficar firme, de pé no chão, com minhas duas pernas. Sem exaltações celestes, sem tempestades celestes. Meu lugar é aqui na terra, não é em nenhum outro lugar.

Assim eu vou trilhando o meu caminho com a consciência de que existe um grande firmamento que se estende sobre mim – sabendo que esse céu também se reflete dentro de mim. E aos poucos eu começo a entender que não sou o ponto central. O mundo não gira ao meu redor. Existem dimensões que me ultrapassam. Isso não me torna pequeno, mas modesto. Minha estória pessoal é parte de uma história infinita. Uma pedrinha de um mosaico num painel sem limites.”

Lorenz Marti em “Como um místico amarra seus sapatos”.

Capa do livro.

A Casa de Hóspedes

“O ser humano é como uma casa de hóspedes
Cada manhã há uma nova chegada
Uma alegria, uma tristeza, uma decepção,
Uma felicidade momentânea vem
Como um visitante inesperado
Dá-lhes as boas-vindas e receba-os a todos,
Inclusive se forem uma multidão de tristezas
Que violentamente varrem tua casa,
Esvaziam teus móveis,
Ainda assim
Trata cada hóspedes com honradez
Talvez estejam limpando a casa
Para um novo deleite.
O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia
Receba-os na porta, sorrindo,
E convida-os a entrar.
Seja grato com quem quer que venha
Porque cada um deles foi enviado
Como um guia do mais além.”
Poema sufi de Rumi

Que no próximo ano as conexões interpessoais continuem florescendo e o conhecimento continue evoluindo através de relações verdadeiramente humanas.

Feliz Natal e um próspero Ano Novo.

Carta para os Principiantes

Georges Stobbaerts

DO, o caminho do conhecimento de si mesmo.
A Via é ligar-nos à dimensão de sabedoria que nos habita.

Aquele que se volta para o Caminho – «Do» – sente no fundo de si mesmo um chamamento: a necessidade de conhecer o seu ser profundo, de descobrir a sua verdadeira natureza. Então, para ele começa um longo caminho.

Mas, primeiro é preciso a confiança – em sânscrito: shraddha -. Tudo emana dela e sem ela nada é possível. É o elo que nos permite crescer. O testemunho daqueles que estão mais avançados no Caminho, existe para nos esclarecer. Mas, acreditar nas suas palavras exige, primeiro, escutá-las. De um modo confuso, já pressentimos a realidade da nossa dimensão espiritual, mas a ajuda de um ancião – em japonês «Sensei»- é necessária para nos guiar neste caminho de interioridade. Portanto, a atitude justa consiste em dar a sua confiança, de modo a poder acolher o ensinamento.

A Via é progressiva

Na Via, deve dar-se tempo ao tempo! Da mesma maneira que não se pode arrancar as raízes de uma árvore para que ela cresça mais depressa. Este voltar-se para si mesmo necessita de tempo, de paciência e de perseverança. É um longo trabalho, um campo a cultivar sem descanso, e sem forçar. É tudo uma questão de dosagem. Não é pela força que se transpõe a entrada que conduz ao coração de si mesmo! Pouco a pouco, a tomada de consciência desta dimensão interior instala-se mais frequentemente e durante mais tempo. As quedas são sempre possíveis, se a vigilância não for mantida. E, para cúmulo da ironia, não só não estamos seguros do resultado de tudo isto, como também devemos saber que os frutos produzidos por este ensinamento quotidiano, deverão ser abandonados.

Apegarmo-nos à descoberta fácil, à felicidade passageira e à paz saboreada de tempos a tempos, torna-se uma armadilha, se queremos guardá-las e possuí-las a todo o preço. Digo- vos: «viajai leves e tereis maior probabilidade de chegar.», se tropeçais num obstáculo, deveis levantar-vos, continuar e recomeçar utilizando todos os meios que estão à vossa disposição, pois o essencial é continuar

Os meios para avançar

As artes do Budo são ferramentas preciosas com múltiplas facetas. As técnicas, o domínio do sopro, a concentração, a meditação e o estudo dos textos clássicos são o caminho obrigatório em direcção a um único fim: a descoberta do nosso ser profundo. Aí, no mais intimo de nós mesmos, encontra-se a nossa verdadeira natureza, em germe e à espera de ser desenvolvida, de ser libertada. Mas, os obstáculos encontrados são inúmeros e dificultam o caminho.

O nosso trabalho consiste em suprimi-los ou contorná-los. A prática é o desempoeirar necessário que deve ser levado a cabo regularmente, pois a poeira obscurece esta luz interior, impedindo-nos de ver claro. No Budo, encontram-se diferentes meios, muitas variedades, estilos diferentes e felizmente que existe tudo isto, pois somos todos diferentes e o Budo toma em consideração a individualidade. Cada um começa por procurar, em seguida, encontra as direcções que lhe interessam, que lhe dão prazer, que o ajudam a progredir, e as proporções nas quais introduzirá tal ou tal actividade na sua prática.

A importância da leitura

Para aquele que procura, se a prática não contém um suporte de estudo dos textos, isso não será suficiente. Para a maior parte dos nossos praticantes, isso parece inútil e desprovido de sentido. Contudo, desde o início que nos encontramos face a nós mesmos, e nesta primeira etapa existe uma certa confusão, então, novos pontos de referência devem ser encontrados.

Alguns irão preencher este vazio com um maior número de técnicas, mudando de estilo, ou de escola. Mas, com o tempo eles encontrar-se-ão num «parque de estacionamento». Mudar de técnicas sem se mudar a si mesmo é um erro! Porque, aquele que não possui uma intenção pura não evoluirá. O ego será rei e obscurecerá ainda mais a sua verdadeira natureza.

Na via, tudo é aprender, tudo é difícil. Graças à experiência compreende-se melhor o principiante e é preciso pensar judiciosamente nos mecanismos de aprendizagem, os quais devem ser, progressivamente, colocados em prática. Depois, passo a passo, saímos da confusão, e como o Zen nos diz: «No início o rio não é mais o rio, a montanha não é mais a montanha; depois do estudo, o rio torna a ser o rio, a montanha torna a ser a montanha.» As coisas clarificam-se, um começo de sentido desenha-se no horizonte. A prática torna-se «abrir mão de». Quando estamos ligados a nós próprios, a prática é o verdadeiro Budo. A leitura, os textos habitam-nos. Eles disponibilizam-se para nos ajudar a compreender o mundo, a agir com discernimento, a escolher a Via que nos conduz à descoberta de Si próprio.

Todos estes esforços servem para quê?

Se é verdadeiro que o Caminho apresenta-se-nos, por vezes, longo e tortuoso, não é menos verdadeiro que alguns benefícios chegam rapidamente: melhoramento da condição física e bem-estar fazem-se sentir. Devemos aproveitar e saborear estes instantes em que o corpo se relaxa, tonifica-se, desabrocha e liberta-se. Mas, os belos dias nem sempre estão presentes, e de tempos a tempos, alguns problemas de saúde vêm romper a harmonia. Contudo, se mergulharmos no nosso centro, aquilo que se agita no exterior perda a sua influência, e reencontramos um lugar ao abrigo dos tormentos exteriores, um local de paz inalterável. Existe, em cada um de nós, uma profunda interioridade por descobrir, um espaço interno, o lugar do Ser.. Cada um encontrará o nome que lhe quiser dar, pois esta realidade onde tudo é sereno, imutável e eterno ultrapassa as palavras. Sabeis que no centro do som existe um Coração? !

Quando a perturbação física é pequena e passageira, este lugar pode parecer acessível. Mas, quando a doença é mais grave, incurável será possível atingir a paz? Podemos ter uma doença muito grave, como por exemplo um carcinoma, e responder tranquilamente: «Eu estou bem, mas este corpo passou uns maus momentos..» A doença é o primeiro obstáculo ensinado por Patanjali1, que o menciona nos seus aforismos: Y.S.1.30: «A exploração subtil do nosso ser interior, acompanhada de uma grande lucidez a nosso respeito, pode ajudar-nos a atenuar o nosso sofrimento»; Y.S.1.36: «Finalmente, trata-se de não confundir a nossa verdadeira natureza com aquilo que sentimos.»; Y.S.1.37: «Colocar-se aí, no centro de si mesmo permite- nos aceitar melhor as patologias que não podemos fazer desaparecer.»

No Budo, como no Yoga o meio proposto para atingir o estado de paz interior, consiste em dar o seu melhor, desapegar-se dos frutos da acção e aceitar aquilo que nos ultrapassa. Esta atitude quotidiana de abertura ao mais profundo de nós mesmos, supõe o abandono do ego a uma força superior.

Ao nível das tensões psicológicas, a procura deste lugar habitado pelo nosso ser profundo, é algo que vai permitir ao homem distanciar-se das repetidas agressões provenientes do meio que o rodeia. A tomada de consciência deste «Princípio Interior» permite relativizar os acontecimentos, desdramatizar as situações quotidianas e, porque não, desenvolver o humor em relação às nossas reacções por vezes inadequadas. O melhoramento do nosso relacionamento com os outros torna-se palpável. Em vez de mergulhar nas acções intempestivas, impõe-se um tempo de paragem, que vai possibilitar a entrada em si mesmo. Nesse momento aparece uma evidência: «Sou livre de agir de uma outra maneira». E, neste espaço de liberdade e de verdade brota uma atitude, uma acção, uma resposta com mais amor, que permite avaliar e não fechar. Uma resposta que liberta dos automatismos.

Voltar-se para o interior reduz os obstáculos, muda o nosso olhar, a nossa escuta e traz à luz aquilo que é na realidade importante: este espaço onde fazemos a experiência do permanente e do inalterável. Progressivamente, podemos viver mais amiúde na consciência da nossa profundeza, que está disponível em todos os instantes e em todas as circunstâncias. Basta estar atento e abrir-se a essa nova dimensão. De passagem, compreendemos que a vida interior tem uma grande importância e, assim, o nosso caminhar torna-se mais credível e profundo. A unificação do nosso ser está em movimento e para quem o deseje, em breve, não restará mais do que um único objectivo a alcançar: a descoberta de si mesmo. Como descrever este plano profundo que nos caracteriza enquanto indivíduo? Uma presença espiritual? Será que é viver o instante presente sem estar prisioneiro do passado e do futuro? Será que é diferente para cada um de nós?

Na via diz-se que existe outra coisa além da mente. Esta outra realidade é superior à mente e é O Mestre. Ela penetra em tudo, é o Testemunha que nos habita. Os textos sânscritos antigos chamam-na de «drashtr» – «aquele que penetra». E diz-se: “é como dois pássaros no mesmo ramo da árvore, um come e o outro observa-o.”

Esta compreensão não é da ordem de um saber, mas sim de uma experiência psico- espiritual; ela enraíza-se na sua própria mutação, nos conflitos que conhecemos e nas respostas, simultaneamente, empíricas, pessoais, colectivas ou tradicionais que soubemos dar. Como Claude Gefre2 diz: «é da ordem do testemunha, e não do doutor». Este princípio espiritual está sempre ligado ao corpo, à materialidade. A sua paciente descoberta leva ao desapego, melhora a compreensão de si próprio e desenvolve o discernimento.

A prática do Budo conduz num sentido justo e leva-nos a tomar consciência da nossa verdadeira natureza: «Não sou nem o meu corpo, nem a minha mente com o seu cortejo de emoções e de reflexões. SOU!»

O estado último é a capacidade de distinguir a mente pacificada, que faz parte do plano material (mundo manifestado), da entidade que percebe que faz parte do domínio espiritual (não manifestado). Chegado a este nível de pura consciência, dá-se o desabrochar de um estado de felicidade e de paz. A liberação, a serenidade podem brotar. Este estado unificado é o verdadeiro estado do Budo: «mushin», em japonês.

Uma vida quase que não chega para realizar o difícil trabalho que acompanha a prática. Mas, que maravilha de perspectiva!

«Conhece-te a ti próprio e conhecerás o universo e os deuses» (Sócrates)

Boa Coragem
Georges Stobbaerts, Hanshi
Abril de 2005

1 Patanjali: sábio hindu, que viveu entre os séculos III e V da nossa Era. É-lhe atribuída uma das mais antigas obras sobre o yoga: Os Yoga-Sutra de Patanjali.

2 Claude Gefre, Michel Meslin, Maître et disciples dans les traditions réligieuses, Paris : éd.Cerf, 1990, p.222.

O Jardim TenChi

Entrada do Hombu Dojo da escola TenChi International na várzea de Sintra, Portugal.

O jardim de TenChi foi inspirado para, através das nossas práticas, reencontrarmos as raízes e elevarmo-nos para o céu. O betão invade-nos e deixa pouco espaço à natureza… Este jardim é ao mesmo tempo simbólico e espiritual… Não é o seu tamanho que conta.

Trabalhar no jardim é estarmos no mundo, é integrarmo-nos no Universo. Meter as mãos na terra é criar uma outra relação com a natureza, com a vida e, portanto, consigo próprio. É um laço bebido numa fonte comum, «a terra». Voltaire dizia «é preciso cultivar o seu jardim». Hoje mais do que nunca! Um jardim como o de TenChi é uma barreira contra a poluição e o stress pelas suas virtudes: as da Natureza, mas também a da sua dimensão contemplativa e de último recurso. O jardim possui esta qualidade de acalmar em profundidade as pessoas que estão saturadas do urbano. Podemos recentrar-nos, o jardim pode recolocar-nos no eixo. Ele torna-se como que uma coluna vertebral simbólica num modo de vida agitado. Esta ligação à Natureza está certamente inscrita na nossa memória celular. O perigo da cidade é afastar-nos dela. Compreender o jardim é viver a plenitude da vida, é ligar-nos de novo à terra, aos ritmos sazonais, aos ritmos cósmicos.

Desde os primeiros jardins, aparecidos na Mesopotâmia em 3000 AC e dedicados aos Deuses, até aos simples jardins medievais, cujas plantas serviam para curar o corpo e o espírito, e até aos jardins Zen, os mais espirituais, sempre o jardim teve uma essência divina. É um lugar sagrado nas diferentes culturas. O Paridaiza persa, o jardim paraíso que encontramos também na Andaluzia. O jardim do Éden, descrito na Bíblia: «Um rio saía do Éden para irrigar o jardim, dali dividindo-se para formar quatro braços» (Gen. 8-10). A alegoria do jardim da alma, o Cântico dos Cânticos, é igualmente uma maravilhosa ode à natureza divina.

O jardim permite despertar uma consciência das energias subtis. O jardim pode ancorar-nos, é uma necessidade humana. Nós, memórias de poeiras, somos infinitamente pequenos em termos do Universo. Nada existe senão por um momento. Nada se aguenta senão por um fio… vida/morte: gosto desta simbólica no jardim. A renovação é constante. Há algo de muito frágil: o que vemos a certa hora pode já lá não estar uma hora depois. O fio parte-se… Pequeno biótipo que procuramos preservar no jardim de TenChi, de uma maneira natural e, no entanto, pensada. O jardim tem uma ponta selvagem, louca, relaxante. O que, de resto, tem a ver connosco!

É um lugar de meditação e, evidentemente, de inspiração. Alegrias e tristezas fazem parte da nossa vida: é preciso passearmo-nos pelo jardim, é a melhor das terapias! Tentai! A natureza lava a tristeza e exalta a felicidade. Por acréscimo, dá também aos outros alegria. É verdadeiramente um elemento de equilíbrio de que todos precisamos. Os jovens alunos devem descobri-lo com um outro olhar do que aquele que, apressado pela prática da sua disciplina, por ele passa sem o ver. Dai-vos ao cuidado de o observar, escutai o vosso coração.

Acreditai que este pequeno pedaço de terra exige trabalho. Respeitai-o também. A natureza alimenta a vossa arte e a nossa arte alimenta a natureza, num vaivém, como uma doce respiração cheia de poesia. Vinde, por vezes, ajudar-nos à sua manutenção. A porta está aberta. O jardim é uma verdadeira lição de «lâcher prise»: está em movimento e nem sempre é possível dominá-lo. O jardim permite recuperar a confiança em si. É a relação primitiva que fascina: o vegetal aproxima-se do humano nos seus ciclos e na sua estrutura.

A natureza é um belo instrumento para melhor nos conhecermos. Ensina-nos a tolerância, porque ensina a aceitar a diferença. Certas plantas não podem coabitar, mas todas existem e felizmente. A natureza ensina-nos também a organização.

O jardim de TenChi transmite-nos a paz. As pedras têm a sua importância: elas correspondem a uma cosmologia bem conhecida do espírito Zen. Se eu me fundir na natureza, estou em paz com a morte… Faço parte do ciclo.

Este jardim, que criámos com os antigos da nossa Escola, desposou os contornos das nossas vidas. Percorrei-o sós de tempos a tempos! Regressai a vós próprios… Passai do jardim exterior ao jardim interior. É o que a natureza deste jardim vos propõe. É um magnífico instrumento de felicidade e de transformação. É o lugar onde o homem procura o seu lugar na natureza. É aqui que se encarna e se confronta enquanto jardineiro. O local é também um lugar de reencontro: consigo, com o outro e para lá de si mesmo.

É o lugar de todos os possíveis. Reentrando em relação com a terra e conhecendo-a, podemos perder muitos medos. Meter as mãos na terra é aceitar morrer. Tudo se pode abrir! É a terra e o húmus que no-lo ensinam. Para compreender o vegetal, é preciso compreender a terra. A terra alimenta o homem. O céu faz crescê-lo. É preciso que o homem tenha consciência disso. Ao utilizar adubos químicos, não alimentamos a terra. É uma terrível mentira. Antes a roubamos. A terra fecha-se.

Lembremos ainda que o jardim na sua dimensão sagrada é frequentemente uma aventura apaixonante. É preciso combinar estrutura e liberdade. A simbólica é importante. Os projectos devem estar em sintonia com uma alegria interior. Não é apenas uma questão de estética: isto reflecte-se na felicidade que cintila nos olhos de cada um. É o grande alimento do jardim de TenChi…

Georges Stobbaerts
Julho 2007

Conheça um pouco mais de TenChi através de fotos.

De novo o Dojo!

Hanshi Georges Stobbaerts, 8º dan Dai Nippon Butoku Kai e fundador da escola TenChi International.

Este artigo é dirigido aos Yudansha e Kodansha da Escola TenChi Internacional, qualquer que seja a sua disciplina 1.

São os alunos, e entre estes os “cintos negros”, que fazem “o lugar onde se pratica a Via”. Eles são os verdadeiros embaixadores da sua arte, mas também do lugar onde praticam a sua disciplina. O professor, o sensei ou o mestre, não são mais do que “o Guardião do Lugar”…

A minha concepção de um Dojo foi sempre a mesma desde a infância embora já não tenha hoje o espírito de um principiante, infelizmente…! Sem falar de filosofia nem de espiritualidade. O Dojo deve ser à partida um lugar onde o verdadeiro espírito seja, antes de tudo mais, uma procura do conhecimento de si mesmo. Considerando a grande pergunta “O que sou eu?”, trata-se sobretudo de aceitar o que somos no “aqui e agora”, para poder ir mais além e aí encontrar uma resposta no caminho da nossa prática. É também o reconhecimento do outro, dos outros… e das necessidades de cada um. É preciso saber também que existe no Homem uma vocação inata, por vezes escondida: “ajudar o próximo”.

A nossa prática deve conduzir-nos, seja a guardar seja a fazer nascer, o ideal que garanta o desabrochar “de si” e dos que nos rodeiam. Um Dojo deve ensinar a dissolver os conflitos da mesma forma que as nossa técnicas transformam os ataques em não-funcionais. É necessário, no Dojo, equilibrar as relações e dar às pessoas a dignidade e o bem-estar que permitam um bom funcionamento do lugar.

Os mais antigos devem ser mediadores a fim de guiar os mais novos e os ajudar a tomar consciência de um trabalho de entreajuda no Dojo e mesmo à sua volta.

Frequentemente os principiantes são motivados por um ideal e, infelizmente, são eles também os mais expostos a um sentimento de impotência face aos mais avançados. A decepção arrasta consigo uma perca de motivação para continuar que leva a que abandonem o Dojo desiludidos! Perdemos nestes casos alguns bons futuros praticantes, tão necessários nesse mesmo Dojo. Eles são todavia as sementes do futuro…

Estes principiantes (kyu) têm assim necessidade de uma metodologia que não se limite somente ao gokyo. Alguns professores não passam destes programas técnicos o que é pena, pois isso poderá transformar-se num “parque de estacionamento”. É por isso que digo frequentemente, no Dojo TenChi, para cada um aprofundar a sua reflexão e propor soluções precisas e concertadas para a melhoria do bem-estar de todos.

Para compreender o que se passa no tatami ou no Dojo, uma breve análise do nosso ambiente se impõe. Diz-se frequentemente “O tapete é o mundo” e é bem verdade!

A Sociedade

Encontramos, um pouco por todo o lado, a discórdia. Basta ligar a rádio ou a televisão. A má utilização do poder e da liberdade reinam frequentemente em inúmeros domínios.

Vejamos as consequências:

  • Fatiga no trabalho
  • Perca de ideais
  • Gestão desleal
  • Assédio e fadiga no trabalho
  • Rejeição e medo do outro
  • Violência afectiva
  • Depressão
  • Conflitos, injustiça
  • Problemas emocionais, medo, cólera
  • Desejo de dominar (deriva das emoções)
  • Recusa de se pôr em questão para o bem de todos
  • Medo de defender posições justas e firmes para se libertar
  • Incapacidade de se exprimir sinceramente, de ser solidário sem se sacrificar.

É evidente que estes problemas sociais podem reflectir-se no Dojo ou na prática.

A alguns princípios filosóficos a ter em consideração:

  • Amar-se e aceitar-se tal como se é (sem complacência)
  • Descobrir o seu ideal, persistir nas suas escolhas
  • Dar provas de responsabilidade, de amor e generosidade (sem se sacrificar)
  • Descobrir a importância da sua consciência (e dos seus sentimentos)
  • Descobrir a importância e a relatividade do seu subconsciente (e das suas emoções)
  • Tomar consciência da sua força e do seu livre arbítrio
  • Dar provas de dignidade
  • Não se deixar corromper (noção de coragem e cobardia)
  • Aprender a aceitar o que está perante si (abrir mão)
  • Descobrir as virtudes da humildade e o sofrimento do orgulho
  • Não confundir exaltação com felicidade, serenidade com indiferença
  • Encontrar o equilíbrio entre matéria e espírito

Estes princípios podem servir de base para uma reflexão, não são limitativos, há muitos outros a descobrir…

O papel do Yudansha no Dojo

O seu papel compromete-o com a operação de mudanças profundas que deveriam levá-lo a um maior equilíbrio, físico e mental, conjugado com o respeito pelos seus ideais, tendo em conta as realidades da nossa sociedade.

Algumas reflexões para os Yudansha

Desde logo, uma motivação para construir uma sociedade sã e pacífica.

Tomar consciência de que a sabedoria e a paz no mundo não podem construir-se a não ser que os seres se libertem dos seus medos e das suas cóleras, estados de espírito que frequentemente regem os nossos comportamentos.

  • Uma vontade de adquirir a sabedoria que permita ver para-além das aparências
  • Controlar as suas emoções
  • Desenvolver um verdadeiro sentido da palavra (aprender a evitar os obstáculos da comunicação)
  • Tomar consciência da falta de escuta
  • Desenvolver o sentido da reflexão (a inteligência e o saber face ao intelecto)
  • Demonstrar iniciativa (dirigir, motivar, sem se impor)
  • Demonstrar diplomacia (falar com firmeza sem exigir)
  • Demonstrar criatividade
  • Demonstrar assiduidade e rigor (sem rigidez)
  • Demonstrar adaptação (sem se obrigar)
  • Demonstrar confiança (sem ingenuidade)
  • Dar importância ao humor (sem escárnio)
  • Dar importância à beleza, à estética e à ordem
  • Ter a atitude correcta no seu ideal
  • Ter determinação nos valores do seu ideal e da sua estética
  • Relativizar as diferentes situações que podem surgir num Dojo
  • Não aderir ao conceito de egoísmo, de cobardia (recusa de tomar posições que possam voltar-se contra o Dojo)
  • Recordar o significado de “kyozon kyoei”, amizade mútua para uma prosperidade mútua
  • Recordar que não há adversário, mas apenas parceiros que caminham juntos em direcção à excelência no espírito de “wa no seishin” que se pode traduzir por “um espírito em paz e em harmonia”
  • Aprender a falar sem tabus nem julgamentos, para encorajar a confiança mútua
  • Compreender que, apesar do nosso amor e desejo de ajuda, o aluno permanece livre e juiz das suas escolhas
  • Recordar “ichigo-ichie” (cada encontro é um tesouro já que não se repete)
  • Na descoberta de si, não se esquecer de tomar consciência das próprias dificuldades emocionais que, desde a infância, engendraram hábitos comportamentais, sofrimentos e cóleras
  • Ter atenção às suas reacções emocionais face aos problemas dos seus interlocutores, a fim de que elas não influam nos nossos julgamentos
  • Ter um interesse fraternal pelo próximo e um conhecimento dos diferentes tipos de personalidade e seus problemas emocionais
  • Ter consciência de que ajudar os outros é um acto extremamente difícil mas que deverá ser feito com o maior dos desapegos (não esperar nada em troca). É também uma capacidade de os guiar num percurso e ajudar nas suas dificuldades, propondo- lhes soluções e práticas.

Sobretudo, está atento ao teu coração mais do que todas as coisas, pois ele é o centro profundo de cada um, ele é vida interior onde tudo está em gestação ou aguarda antes de se realizar em palavras e actos.

Estas poucas reflexões, para os yudansha, são um convite e o voto de que cada um os interiorize, com vista a uma relação mais ponderada consigo próprio, o seu ambiente e o seu próximo.

Georges Stobbaerts Março de 2010

1 –Yudansha – Titulares de um grau Dan. Kodansha – Pessoas que tenham pelo menos o 4o Dan ou que desde há muito tempo tenham um grau Dan.