“O Caminho do aiki e o Caminho da espada estão intimamente conectados nos princípios básicos, nos movimentos e nos métodos. Superficialmente, os dois parecem ser radicalmente diferentes, porque o Aikidõ é uma arte marcial de mãos vazias, enquanto que a arte da espada faz uso de uma arma. Mas quando se vai além da superfície, percebem-se muitos pontos em comum. (A referência aqui é ao Kenjutsu, ou arte da espada de combate, e não tanto ao Kendõ, que é um esporte moderno. Encontramos a semelhança com o Aikidõ não tanto no Kendõ, mas em seu predecessor.)
Uma pressuposição comum é que o Aikidõ tem relação mais próxima com o Judô do que com a arte da espada. Isso é compreensível porque ambos são formas de arte marcial de mãos vazias, e se conhecemos, por pouco que seja, os antecedentes do Fundador, estaremos conscientes do importante papel formativo desempenhado pelo Jujutsu no desenvolvimento do Aikidõ. O Fundador, treinado na escola Daitõ de Jujutsu, incorporou alguns de seus métodos ao Aikidõ, e técnicas como a chave de punho, golpes, projeções e imobilizações foram modeladas tendo por base o Jujutsu clássico ou à sua forma moderna, o Judô.
Mas as semelhanças são ofuscadas pelas diferenças. No Aikidõ, por exemplo, não existe o equivalente do Judô que consiste em agarrar a manga ou o colarinho do adversário. Por não haver luta corpo a corpo direta e nem competição, o Aikidõ não tem técnicas ofensivas. E também não dispõe do mesmo tipo de técnicas de solo pelas quais o oponente é imobilizado com chaves e pressões no pescoço.
Entre as muitas semelhanças entre o Aikídõ e a arte da espada existem algumas que são fundamentais: a postura de pé, a distância ou espaço entre duas pessoas, a posição dos olhos, o movimento dos pés, e as técnicas derivadas, todas elas notavelmente correspondentes, para não dizer idênticas. Enquanto o traje de Judô é solto devido à luta. corpo a corpo, a vestimenta padrão do Aikidõ e da arte da espada é o hakama, a veste formal longa e semelhante a uma saia, que favorece o movimento de duas pessoas que se enfrentam. (O Kendõ também utiliza o hakama, mas com equipamentos de proteção variados. Os principiantes de Aikidõ geralmente não usam o hakama)
Por outro lado, uma comparação detalhada do Aikidõ com a arte da espada revela diferenças mínimas. Um exemplo é a tomada de distância (ma-ai). Na arte da espada, o espaço adequado entre as duas pessoas é estabelecido quando as pontas das duas espadas que se confrontam se sobrepõem ligeiramente, de modo que um passo adiante significaria um golpe fatal contra o adversário. No Aikidõ, quando duas pessoas se enfrentam na postura hanmi, as mãos, equivalentes ao fio da espada, não se tocam, e o espaço é ajustado para eficiência máxima para a execução da técnica de entrada (irimi). Além disso, no uso da espada, o princípio básico para definir a distância é o mesmo, quer se a segure na posição alta ou na baixa. Mas há variação no Aikidõ, dependendo da técnica: se ambos estão sentados, se um está sentado e o outro de pé ou os dois de pé; se um contra muitos; ou se um contra uma pessoa armada.
Neste sentido, não podemos estabelecer uma equivalência precisa entre o Aikidõ e a arte da espada, mas, como se observou anteriormente, os princípios básicos, os movimentos e os métodos das duas artes têm muito em comum. As semelhanças não surgiram por acaso, pois era intenção clara de mestre Ueshiba desde o começo utilizar as vantagens pertencentes à arte da espada, e dedicou tempo e energia consideráveis para incorporá-las ao Aikidõ.
Desde seus primeiros anos, o Fundador teve um interesse muito grande pela arte da espada. De fato, dedicou-se a conhecê-la a fundo antes de deixar-se absorver pelo Jujutsu Daitõ. Mesmo depois de fazer do Aikidõ uma forma independente de Budõ, ele gostava de praticar com a espada e com o bokuto (espada de madeira). Certa ocasião, estabeleceu-se uma seção de Kendõ no Dõjõ Kõbukan, e entre 1936 e 1940 muitos membros provenientes do Yushinkan, incluindo Nakakura Kiyoshi, Haga Jun’ichi, Nakajima Gorõzõ e outros, frequentavam nosso dõjõ. Na minha juventude, o Fundador me convenceu a aprender a arte da espada no estilo Kashima Shintõ, o que também demonstra sua profunda afeição e grande respeito pela arte. Ao procurar ativamente incorporar certos princípios da arte da espada ao Aikidõ, talvez estivesse tentando desenvolver uma base teórica para o Aikidõ, que então era apenas incipiente.
O Aikidõ não usa armas e é fundamentalmente uma arte marcial de mãos vazias, mas a mão, por exemplo, não é simplesmente uma extensão do corpo. Chamada mão-espada (te-gatana), torna-se uma arma para golpear, transformando-se numa espada. E quando é usada como uma espada, o movimento segue naturalmente o de um espadachim. Este é um exemplo de um movimento do Aikidõ como uma manifestação concreta de um princípio da arte da espada.
Um modelo clássico desta manifestação é o Shihõ-nage. O princípio desta técnica está traçado segundo a maneira básica de manejar a espada. De pé, com o pé esquerdo ou direito como eixo, empunha-se a espada para cortar em quatro, oito ou dezesseis direções. Usando as técnicas básicas do Aikidõ de entrada e de rotação esférica, utiliza-se a mão-espada para projetar o adversário em quatro, oito ou dezesseis direções.
Segundo a situação ou a necessidade, essa técnica tem variações infinitas. Quando o ataque é um golpe proveniente do lado esquerdo ou do lado direito do oponente, a resposta é um shihõ-nage que o rebata. Se o ataque consiste em agarrar ambos os punhos por trás, executa-se um shihõ-nage a partir dessa posição. E se um atacante nos segura o ombro quando estamos sentados, defendemo-nos com shihõ-nage. Qualquer que seja a situação, o shihõ-nage segue essencialmente o mesmo padrão. No primeiro estágio, a estabilidade do adversário é alterada pela entrada e pela rotação esférica. No segundo estágio, o oponente é atraído para o círculo de movimento que se está realizando. No estágio final, a mão direita ou esquerda (às vezes, ambas) é usada como mão-espada — é elevada até acima da cabeça e baixada rapidamente para projetar o adversário.
Cada movimento no shihõ-nage é ditado pela consciência de lazer uso da mão como uma espada, o que significa que a mão do adversário é considerada como o fio de uma espada. Embora nenhuma das partes esteja armada, a ação é tão intensa como se se estivesse usando lâminas desembainhadas. Naturalmente, para que seja forte e eficaz, o shihõ-nage requer concentração do ki, e o fluxo de ki que se origina no poder da pulsação se expressa plenamente através da mão — o fio cortante — , o que faz com que o lançamento seja enérgico e poderoso. Se o ki não fluir, o adversário não será lançado com facilidade.
O shihõ-nage é o alfa e o ômega das técnicas do Aikidõ, e sua perfeição, um sinal de mestria da arte. Deve-se isto ao fato de que ele encarna da maneira mais clara possível o princípio da arte da espada. Este é o exemplo que melhor revela a relação íntima que existe entre o Aikidõ e a arte da espada.
Embora o Aikidõ seja basicamente uma arte que não faz uso de armas, e o treinamento consista em duas pessoas enfrentando-se com as mãos abertas, podem-se encontrar também aplicações das técnicas básicas em que se usam a espada, a faca, a vara ou o bastão. Nesse caso, sucede o inverso de usar a mão como se fosse uma espada: as armas são usadas e manejadas não como objetos, mas como extensões do corpo.
O que se disse até aqui deve ser suficiente para mostrar a estreita relação entre o Aikidõ e a arte da espada. Mas não é o bastante para compreender por que o Fundador incorporou a arte da espada ao desenvolvimento do Aikidõ. Além disso, devemos reconhecer plenamente o génio do Fundador ao formular o Aikidõ com base no Jujutsu clássico e nos princípios da arte da espada, ambos de natureza ostensivamente diferentes. Sua originalidade não está em meramente combinar os dois, mas em fundar uma nova forma de Budo que pôs em evidência o melhor de ambos.
O ardente desejo do Fundador ao instituir o Aikidõ era conservar vivo no mundo moderno o legado mais valioso do Budõ. Para alcançar o seu objetivo, foi além das aparências superficiais para captar a essência de cada arte marcial e para dar-lhe vida sob uma nova forma. A forma motivadora era sua intensa busca espiritual para descobrir uma filosofia do Budõ que propiciasse a vida e a protegesse. O resultado foi a transformação do coração do Budõ no coração do Aikidõ, o caminho da harmonia e do amor.”
* Retirado da apresentação do livro O Espírito do Aikido