DO, o caminho do conhecimento de si mesmo.
A Via é ligar-nos à dimensão de sabedoria que nos habita.
Aquele que se volta para o Caminho – «Do» – sente no fundo de si mesmo um chamamento: a necessidade de conhecer o seu ser profundo, de descobrir a sua verdadeira natureza. Então, para ele começa um longo caminho.
Mas, primeiro é preciso a confiança – em sânscrito: shraddha -. Tudo emana dela e sem ela nada é possível. É o elo que nos permite crescer. O testemunho daqueles que estão mais avançados no Caminho, existe para nos esclarecer. Mas, acreditar nas suas palavras exige, primeiro, escutá-las. De um modo confuso, já pressentimos a realidade da nossa dimensão espiritual, mas a ajuda de um ancião – em japonês «Sensei»- é necessária para nos guiar neste caminho de interioridade. Portanto, a atitude justa consiste em dar a sua confiança, de modo a poder acolher o ensinamento.
A Via é progressiva
Na Via, deve dar-se tempo ao tempo! Da mesma maneira que não se pode arrancar as raízes de uma árvore para que ela cresça mais depressa. Este voltar-se para si mesmo necessita de tempo, de paciência e de perseverança. É um longo trabalho, um campo a cultivar sem descanso, e sem forçar. É tudo uma questão de dosagem. Não é pela força que se transpõe a entrada que conduz ao coração de si mesmo! Pouco a pouco, a tomada de consciência desta dimensão interior instala-se mais frequentemente e durante mais tempo. As quedas são sempre possíveis, se a vigilância não for mantida. E, para cúmulo da ironia, não só não estamos seguros do resultado de tudo isto, como também devemos saber que os frutos produzidos por este ensinamento quotidiano, deverão ser abandonados.
Apegarmo-nos à descoberta fácil, à felicidade passageira e à paz saboreada de tempos a tempos, torna-se uma armadilha, se queremos guardá-las e possuí-las a todo o preço. Digo- vos: «viajai leves e tereis maior probabilidade de chegar.», se tropeçais num obstáculo, deveis levantar-vos, continuar e recomeçar utilizando todos os meios que estão à vossa disposição, pois o essencial é continuar…
Os meios para avançar
As artes do Budo são ferramentas preciosas com múltiplas facetas. As técnicas, o domínio do sopro, a concentração, a meditação e o estudo dos textos clássicos são o caminho obrigatório em direcção a um único fim: a descoberta do nosso ser profundo. Aí, no mais intimo de nós mesmos, encontra-se a nossa verdadeira natureza, em germe e à espera de ser desenvolvida, de ser libertada. Mas, os obstáculos encontrados são inúmeros e dificultam o caminho.
O nosso trabalho consiste em suprimi-los ou contorná-los. A prática é o desempoeirar necessário que deve ser levado a cabo regularmente, pois a poeira obscurece esta luz interior, impedindo-nos de ver claro. No Budo, encontram-se diferentes meios, muitas variedades, estilos diferentes e felizmente que existe tudo isto, pois somos todos diferentes e o Budo toma em consideração a individualidade. Cada um começa por procurar, em seguida, encontra as direcções que lhe interessam, que lhe dão prazer, que o ajudam a progredir, e as proporções nas quais introduzirá tal ou tal actividade na sua prática.
A importância da leitura
Para aquele que procura, se a prática não contém um suporte de estudo dos textos, isso não será suficiente. Para a maior parte dos nossos praticantes, isso parece inútil e desprovido de sentido. Contudo, desde o início que nos encontramos face a nós mesmos, e nesta primeira etapa existe uma certa confusão, então, novos pontos de referência devem ser encontrados.
Alguns irão preencher este vazio com um maior número de técnicas, mudando de estilo, ou de escola. Mas, com o tempo eles encontrar-se-ão num «parque de estacionamento». Mudar de técnicas sem se mudar a si mesmo é um erro! Porque, aquele que não possui uma intenção pura não evoluirá. O ego será rei e obscurecerá ainda mais a sua verdadeira natureza.
Na via, tudo é aprender, tudo é difícil. Graças à experiência compreende-se melhor o principiante e é preciso pensar judiciosamente nos mecanismos de aprendizagem, os quais devem ser, progressivamente, colocados em prática. Depois, passo a passo, saímos da confusão, e como o Zen nos diz: «No início o rio não é mais o rio, a montanha não é mais a montanha; depois do estudo, o rio torna a ser o rio, a montanha torna a ser a montanha.» As coisas clarificam-se, um começo de sentido desenha-se no horizonte. A prática torna-se «abrir mão de». Quando estamos ligados a nós próprios, a prática é o verdadeiro Budo. A leitura, os textos habitam-nos. Eles disponibilizam-se para nos ajudar a compreender o mundo, a agir com discernimento, a escolher a Via que nos conduz à descoberta de Si próprio.
Todos estes esforços servem para quê?
Se é verdadeiro que o Caminho apresenta-se-nos, por vezes, longo e tortuoso, não é menos verdadeiro que alguns benefícios chegam rapidamente: melhoramento da condição física e bem-estar fazem-se sentir. Devemos aproveitar e saborear estes instantes em que o corpo se relaxa, tonifica-se, desabrocha e liberta-se. Mas, os belos dias nem sempre estão presentes, e de tempos a tempos, alguns problemas de saúde vêm romper a harmonia. Contudo, se mergulharmos no nosso centro, aquilo que se agita no exterior perda a sua influência, e reencontramos um lugar ao abrigo dos tormentos exteriores, um local de paz inalterável. Existe, em cada um de nós, uma profunda interioridade por descobrir, um espaço interno, o lugar do Ser.. Cada um encontrará o nome que lhe quiser dar, pois esta realidade onde tudo é sereno, imutável e eterno ultrapassa as palavras. Sabeis que no centro do som existe um Coração? !
Quando a perturbação física é pequena e passageira, este lugar pode parecer acessível. Mas, quando a doença é mais grave, incurável será possível atingir a paz? Podemos ter uma doença muito grave, como por exemplo um carcinoma, e responder tranquilamente: «Eu estou bem, mas este corpo passou uns maus momentos..» A doença é o primeiro obstáculo ensinado por Patanjali1, que o menciona nos seus aforismos: Y.S.1.30: «A exploração subtil do nosso ser interior, acompanhada de uma grande lucidez a nosso respeito, pode ajudar-nos a atenuar o nosso sofrimento»; Y.S.1.36: «Finalmente, trata-se de não confundir a nossa verdadeira natureza com aquilo que sentimos.»; Y.S.1.37: «Colocar-se aí, no centro de si mesmo permite- nos aceitar melhor as patologias que não podemos fazer desaparecer.»
No Budo, como no Yoga o meio proposto para atingir o estado de paz interior, consiste em dar o seu melhor, desapegar-se dos frutos da acção e aceitar aquilo que nos ultrapassa. Esta atitude quotidiana de abertura ao mais profundo de nós mesmos, supõe o abandono do ego a uma força superior.
Ao nível das tensões psicológicas, a procura deste lugar habitado pelo nosso ser profundo, é algo que vai permitir ao homem distanciar-se das repetidas agressões provenientes do meio que o rodeia. A tomada de consciência deste «Princípio Interior» permite relativizar os acontecimentos, desdramatizar as situações quotidianas e, porque não, desenvolver o humor em relação às nossas reacções por vezes inadequadas. O melhoramento do nosso relacionamento com os outros torna-se palpável. Em vez de mergulhar nas acções intempestivas, impõe-se um tempo de paragem, que vai possibilitar a entrada em si mesmo. Nesse momento aparece uma evidência: «Sou livre de agir de uma outra maneira». E, neste espaço de liberdade e de verdade brota uma atitude, uma acção, uma resposta com mais amor, que permite avaliar e não fechar. Uma resposta que liberta dos automatismos.
Voltar-se para o interior reduz os obstáculos, muda o nosso olhar, a nossa escuta e traz à luz aquilo que é na realidade importante: este espaço onde fazemos a experiência do permanente e do inalterável. Progressivamente, podemos viver mais amiúde na consciência da nossa profundeza, que está disponível em todos os instantes e em todas as circunstâncias. Basta estar atento e abrir-se a essa nova dimensão. De passagem, compreendemos que a vida interior tem uma grande importância e, assim, o nosso caminhar torna-se mais credível e profundo. A unificação do nosso ser está em movimento e para quem o deseje, em breve, não restará mais do que um único objectivo a alcançar: a descoberta de si mesmo. Como descrever este plano profundo que nos caracteriza enquanto indivíduo? Uma presença espiritual? Será que é viver o instante presente sem estar prisioneiro do passado e do futuro? Será que é diferente para cada um de nós?
Na via diz-se que existe outra coisa além da mente. Esta outra realidade é superior à mente e é O Mestre. Ela penetra em tudo, é o Testemunha que nos habita. Os textos sânscritos antigos chamam-na de «drashtr» – «aquele que penetra». E diz-se: “é como dois pássaros no mesmo ramo da árvore, um come e o outro observa-o.”
Esta compreensão não é da ordem de um saber, mas sim de uma experiência psico- espiritual; ela enraíza-se na sua própria mutação, nos conflitos que conhecemos e nas respostas, simultaneamente, empíricas, pessoais, colectivas ou tradicionais que soubemos dar. Como Claude Gefre2 diz: «é da ordem do testemunha, e não do doutor». Este princípio espiritual está sempre ligado ao corpo, à materialidade. A sua paciente descoberta leva ao desapego, melhora a compreensão de si próprio e desenvolve o discernimento.
A prática do Budo conduz num sentido justo e leva-nos a tomar consciência da nossa verdadeira natureza: «Não sou nem o meu corpo, nem a minha mente com o seu cortejo de emoções e de reflexões. SOU!»
O estado último é a capacidade de distinguir a mente pacificada, que faz parte do plano material (mundo manifestado), da entidade que percebe que faz parte do domínio espiritual (não manifestado). Chegado a este nível de pura consciência, dá-se o desabrochar de um estado de felicidade e de paz. A liberação, a serenidade podem brotar. Este estado unificado é o verdadeiro estado do Budo: «mushin», em japonês.
Uma vida quase que não chega para realizar o difícil trabalho que acompanha a prática. Mas, que maravilha de perspectiva!
«Conhece-te a ti próprio e conhecerás o universo e os deuses» (Sócrates)
Boa Coragem
Georges Stobbaerts, Hanshi
Abril de 2005
1 Patanjali: sábio hindu, que viveu entre os séculos III e V da nossa Era. É-lhe atribuída uma das mais antigas obras sobre o yoga: Os Yoga-Sutra de Patanjali.
2 Claude Gefre, Michel Meslin, Maître et disciples dans les traditions réligieuses, Paris : éd.Cerf, 1990, p.222.
Tive a honra de conhecer e participar da “última “ aula com o Mestre Geogres. Mesmo enfermo , ele fez questão de vir e prestigiar o estágio. Depois soube que estava com câncer e veio a falecer. Realmente viveu como ensinava , com honra , equilíbrio, sabedoria e humildade.