Com o passar do tempo e a modernização da civilização, os valores humanos mudam cada vez mais para tentar suprir a necessidade de uma formação acadêmica composta de um certo excesso de informações para um bom posicionamento em áreas profissionais. O crescimento pessoal deixa de lado os valores transmitidos através da convivência humana e o homem passa a retrair-se em seus lares, deixando assim de compartilhar emoções e experiências inter-pessoais com o mundo exterior. Devido a esta falta de tempo para convívio familiar, vivemos em um mundo onde a transmissão de conhecimentos e vivências de pai para filho torna-se esquecida e até mesmo obsoleta. Sempre sufocado em seus prazos, o homem moderno torna-se individualista e recluso.
O mesmo ocorre no contexto das artes marciais onde, até mesmo no Japão, o ensinamento mestre/discípulo se deteriora através da comercialização de diplomas. As escolas de artes marciais passam a ser empresas bem sucedidas que crescem através da formação de alunos despreparados, que depois de alguns poucos anos de práticas tentam transmitir experiências pelas quais ainda não passaram. É comum encontrarmos praticantes já graduados e que fazem uma saudação ao entrar no tatame, no cerimonial ou após praticar com outras pessoas sem saber seu significado, tornando-a assim um gesto vazio e sem vida. Sempre preocupado com os valores da etiqueta, o mestre Georges Stobbaerts escreveu o livro Reigi, publicado em 2000 pela editora TenChi. Na minha opinião, uma literatura obrigatória para todos os praticantes, não apenas de Aikido, que procuram o verdadeiro sentido da prática. Com o mestre Stobbaerts, aprendi que o programa técnico é apenas um suporte, obviamente com sua importância, ao início de um longo aprendizado e que além dele existem várias outras variáveis que influenciam a experiência no tapete. Também aprendi que existe um mundo extra tatame, no qual posso e devo levar tudo que estou aprendendo para ele. Externar a prática para o dia-a-dia não significa distribuir socos e pontapés para todos os lados. Significa ter a mínima compreensão de algumas virtudes e trazê-la para o cotidiano:
- Yuuki (勇) – Coragem, Valor, Bravura: para enfrentar as dificuldades encontradas;
- Jin (仁) – Humanidade, Misericórdia, Benevolência: para ajudar outras pessoas;
- Gi (義) – Justiça, Retidão, Integridade: para escolher o caminho a ser seguido;
- Rei (礼) – Etiqueta, Cortesia, Civilidade: para me relacionar e conviver harmoniosamente com outras pessoas;
- Makoto (誠) – Sinceridade, Honestidade, Realidade: para contribuir com o crescimento pessoal de si próprio e dos outros que nos cercam;
- Chuugi (忠義) – Lealdade, Fidelidade, Devoção: para que as pessoas possam confiar sempre que precisarem;
- Meiyo (名誉「名譽) – Honra, Credibilidade, Glória; também Reputação, Dignidade, Prestígio: para respeitar e ser respeitado nas decisões tomadas.
O que poucas pessoas sabem é que estas virtudes estão também diretamente ligadas a vestimenta nas artes marciais. Cada arte possui seu Keikogi (稽古着; keiko = treinamento; gi = roupa), apropriado e indispensável para sua prática. A palavra Keikogi ou Keikogui (稽古衣) é comumente substituída pela palavra Gi (着 ou 衣), o que não é correto já que esta segunda por si só não representa o mesmo significado. Uma substituição correta seria Dogi (道着) que significa “uniforme usado no caminho escolhido”, onde pode-se colocar o nome da disciplina praticada no lugar de “do”, obtendo-se assim o significado exato de dogi:
- Aikidogi (合気道着 ou 合気道衣, uniforme utilizado no Aikido);
- Kendogi (剣道着 ou 剣道衣, uniforme utilizado no Kendo);
- Judogi (柔道着 ou 衣, uniforme utilizado no Judo);
- Jujutsugi(柔術着 ou 柔術衣, uniforme no jiu-jitsu);
- Karategi (空手着 ou 空手衣, uniforme no Karate);
O dogi não é apenas uma vestimenta a ser utilizada nos treinos. Existe todo um simbolismo próprio em relação a ela mesma, aos princípios do Budo, das virtudes dos samurais e da arte marcial praticada. A roupa usada na prática do Aikido é composta pelo casaco (wagi) e calça (shitabaki) brancas e uma faixa, também conhecida como obi, que ajuda a fechar o casaco. Algumas escolas adotam o sistema de faixas coloridas kyu/dan elaborada pelo mestre Jigoro Kano, criador do Judo, enquanto outras utilizam o sistema mais tradicional, apenas com as faixas branca e preta. Diversos autores e mestres citam as faixas coloridas (kyus) como um caminho até a aceitação do praticante como aluno da escola ao receber o diploma de faixa preta (dan). O mestre Stobbaerts, em uma conversa pessoal, definiu-me este sistema de uma forma bem mais acolhedora citando os kyus como os níveis de compromisso dos alunos com a escola bem como a preparação do mesmo para o início do aprendizado mais profundo. Como poucas pessoas sabem, atingir a graduação de primeiro dan (shodan), não significa receber um certificado de conclusão, e sim marcar a passagem de transição de uma preparação para o início do verdadeiro aprendizado. O aluno passou pelas fases preparatórias iniciais do corpo e da mente e esta apto a iniciar seu caminho na disciplina. O mesmo vale para as outras graduações, seja ela qual for, ela representa a transição entre fases de aprendizado.
Outra peça que compõe o aikidogi é o hakama. Muitas vezes confundido com uma saia, o hakama utilizado atualmente na prática das artes marciais é uma calça folgada e pregueada também conhecida como joba hakama. Originalmente elaborada para proteger as pernas dos cavaleiros samurais contra ferimentos causados por arbustos e galhos enquanto cavalgavam, sua utilização ajudava a identificar os guerreiros perante a população japonesa antiga. Alguns pesquisadores defendem também que esta vestimenta servia para esconder os pés em duelos e batalhas, impossibilitando a previsão de um ataque caso o oponente conhecesse o estilo de combate da outra escola.
Na prática do aikido, sua utilização varia de escola para escola, podendo ser utilizado desde o primeiro dia de prática do aluno ou apenas por aqueles que possuem a graduação de shodan em diante (yudansha). Inicialmente, não haviam restrições quanto a cor do hakama. Devido a falta de recursos financeiros muitos alunos do Mestre Morihei Ueshiba(植芝盛平 Ueshiba Morihei), fundador do Aikido, confeccionavam suas próprias calças com o tecido mais resistente que conseguiam adquirir. Muitos deles eram feitos em cores pouco convencionais, como verde e vermelho, o que levou O-Sensei a padronizar seu uso nas cores preta ou azul escuro para os alunos e reservado a cor branca para uso pessoal ou por futuros grandes mestre da arte. Nas costas do hakama, o nome do praticante é geralmente colocado do lado direito, bordado em japonês com kanji chinês, ou sinais de katakana japonês nas cores laranja intenso ou amarelo. A peça também é composta pelo koshiita, que situa-se na parte lombar ajudando a manter a vestimenta na posição correta e melhorando assim a postura do praticante, e do himo que são as tiras ou faixas para amarração (ushirohimo: tiras curtas e posteriores; maehimo: tiras compridas e frontais).
Outra característica bastante marcante desta peça e que exige um cuidado especial são seus vincos ou dobras, chamados de hida. Além de tornar o hakama visualmente atraente por sua beleza, esses vincos possuem significados bem mais amplo perante a sociedade japonesa, cultura samurai ou arte marcial praticada, pouco conhecido até mesmo pelos próprios yudansha. No total de sete dobras, cinco na parte da frente (yosehida) e duas na parte de traz (ôhida), elas podem também representar as virtudes do samurai, como já citadas no início do texto. As grandes dobras também são conhecidas, em alguns contextos, por representar a consolidação das cinco virtudes (五徳 gotoku) representadas pelas pregas frontais. De acordo com alguns testemunhos e documentos antigos, o ato de dobrar o hakama pelos samurais era um ritual de confirmação de seu Do (道 caminho). Ao dobrar seu hakama, o verdadeiro samurai, conhecedor e seguidor das sete virtudes, refletia sobre a sua vida e verificava se estava trilhando o caminho correto.
O livro Memórias do Grande Mestre (Ô Sensei Morihei Ueshiba) da editora Pensamento relata uma lição do Mestre aos seus alunos sobre o hakama. Nele, Mitsugi Saotome, uchi deshi de Ô Sensei durante quinze anos e instrutor do Aikikai Hombu Dojo até a morte do fundador em 1969, cita sua experiência ao esquecer o seu hakama e tentar entrar no tatame para treinar:
Quando eu era uchi deshi de Ô Sensei, todos deveriam usar hakama nos treinos. Desde a primeira vez. Não havia restrições ao tipo de hakama que você usasse; por isso o dojô era um lugar tão colorido. Eu vi todos os tipo de hakama, desde os mais simples aos mais sofisticados e caros. Havia gente usando hakama de Kendo, hakama próprio para dança e hakama de seda – chamados de sendai hira. Eu ficava imaginando aqueles estudantes persistentes, que faziam o diabo para pegar emprestado o hakama de seus avós; exatamente aqueles feitos para ocasiões especiais e cerimônias, estragando-os na prática de suwariwaza.
“Eu lembro vividamente do dia em que eu esqueci o meu hakama. Eu já estava me preparando para entrar no tatame usando só o meu dogi (keikogi), quando Ô Sensei me parou. ‘Onde está o seu hakama?’, perguntou rispidamente. ‘O que o faz pensar que pode receber instruções do seu mestre usando só roupas de baixo? Você não tem senso de decoro? Obviamente, está lhe faltando a atitude e etiqueta necessária para alguém que segue o caminho e os ensinamentos do budô. Sente-se ali, e apenas assista a aula!’ Esse foi apenas o primeiro de muitos sermões que eu recebi de Ô Sensei. Contudo, minha ignorância naquela ocasião chamou atenção de Ô Sensei para que ele desse uma aula, para todos os uchi deshi, sobre o significado do hakama. Ele explicou que o hakama era um traje para os estudantes do kobudô (o budô tradicional) e perguntou se havia alguém, dentre nós, que sabia o significado das sete dobras do hakama. ‘Elas simbolizam as sete virtudes do budô”. Ô Sensei disse: “elas são jin (benevolência), gi (honra), rei (cortesia), chi (sabedoria), shin (sinceridade), chu (lealdade) e koh (compaixão). Nós encontramos essas qualidades nos samurais do passado. O hakama nos leva a refletir a natureza do bushidô. Vesti-lo simboliza as tradições que nos foram passadas de geração em geração. O aikido nasceu do espírito do bushidô e, através da prática, devemos nos esforçar ao máximo para lapidar essas sete virtudes tradicionais.‘”
Este e outros textos sobre os princípios do Aikido também podem ser encontrados no livro “The Principles of Aikido”, escrito pelo próprio Saotome.
Portanto, é importante manter viva esta tradição, não se deixando apanhar pelo corre-corre da vida moderna ou até mesmo pelo automatismo através da repetição. Aproveite este gesto, que deve ser realizado após o término de cada aula, como um momento de reflexão e meditação.