DO REIGI

Mestre Georges Stobbaerts com alunos de Recife.

Tudo começa e tudo acaba com um cerimonial. O verdadeiro cerimonial desenvolve uma profunda sinceridade mútua e reforça qualidades do foro da percepção intuitiva. Para descobrir o tesouro que nele se esconde, é essencial uma vigilância extrema e que sua realização seja profundamente interiorizada, apesar da simplicidade técnica de que se reveste.

Georges Stobbaerts

O cerimonial utilizado na prática das Artes Marciais tem a maior importância na tomada de consciência do breve momento de silêncio que acontece antes e depois da prática e que, em primeiro lugar, é dedicado a “Unidade do Ser”. Constitui também um sinal de respeito interior que se exterioriza por uma atitude correcta: respeito pelos outros, respeito por si próprio.

É um facto que o cerimonial e os ritos de cada país estão impregnados da tradição, psicologia e costumes próprios à sociedade humana que nasceram. Mas, em cada tradição, existem sempre convergências que são universais. Numa época como a nossa, a necessidade de compreender e sentir o outro, para além das nossas diferenças, é um primeiro passo para a compreensão mútua, que facilitará a abordagem da realidade transcendente, origem e termo de todos os continentes.

O cerimonial é, acima de tudo, um cerimonial do corpo presente no mundo, de um comportamento e de gestos em relação a certas circunstâncias da nossa vida ou do meio exterior. A harmonia pelo cerimonial, quer compreendamos a sua significaçãoplena, quer a ele nos sujeitemos por hábito, exige um acto bem executado, logo, realizado lenta e cuidadosamente (acalmando a respiração), estando presente no que fazemos, vigilantes e lúcidos, consciente do gesto, das circunstâncias e da eficácia.

É de tudo isto que o homem moderno, activo e responsável, se mostra mais incapaz. Sempre preocupado com o dia de amanhã, nunca está presente naquilo que faz. Sempre apressado, não pode sentar-se correctamente em seiza. Perdido nas suas ideias, nas suas preocupações, é um “intelectual” que já não possui corpo, tendo os sentidos fechados ao mundo. Sempre sob tensão, inquieto,  descurando o repouso, não tarda a sucumbir aos desequilíbrios da fadiga nervosa.

Ao fazer-nos sentir o corpo presente no mundo, ao ensinar-nos a retomar o controlo sobre as desarmonias e crispações decorrentes do enervamento, ao provocar em nós – isto é, nos centros reguladores da base do cérebro, centros de unidade e dos mecanismos afectivos – a harmonia, a calma e a paz, o cerimonial permite que reencontremos a nossa verdadeira natureza.

O cerimonial ajuda a libertarmo-nos dos nossos mecanismos mentais, Ao fazer, calma e lentamente, actos conscientes e gestos sentidos, ao evocar mentalmente imagens que nos dão o controlo da nossa imaginação, sintonizamos a subjectividade da nossa emissão cerebral a objectividade do corpo e do mundo. Trata-se de um verdadeiro ritual do repouso e do apaziguamento, cujo valo psíco-físico é indiscutível.

Aqui, os espiritualistas protestariam, argumentando que pretendo fazer do cerimonial um meio de reequilibrar os “nervosos”. Mas atenção, a tentação do “espiritual” é a de se fechar na sua alma angélica que esquece o corpo e o mundo, frequentemente despreszados… Trata-se de uma infidelidade à nossa natureza humana, feita de unidade psicossomática, em que a alma, forma do corpo, deve ser bem utilizada segundo uma técnica que o Oriente nos vem relembrar.

Como se sentar, como meditar, quando se é um ser “estressado”, incapaz de fazer em si o silêncio? O cerimonial, que é também é uma técnica de apaziguamento pela reeducação do controlo cerebral, é um meio de revivificação que nos abre à Graça, ao grande Sopro, na fidelidade à nossa natureza, isto é, à realidade do nosso ser.

Não poderíamos esquecer, neste efeito salutar do repouso, aquela paz de uma outra ordem, que permite a abertura ao transconsciente, maior naquele que nele acredita, mar que existe também no principiante, sem que ele o saiba e cuja falta de conhecimento não suprime a acção do Ki, desde que se coloque nas condições físicas que permitam recebê-lo.

Um bom cerimonial é o hábito de se controlar sem esforço e sem nisso pensar. Um mau cerimonial é o que nos faz perder o controlo.

O indivíduo bem controlado não é aquele que faz um esforço tenso de vontade, mas aquele que sabe querer sem esforço.

* Texto do livro REIGI escrito pelo mestre Stobbaerts.