Corrija seu próprio coração.

Escrito por Bruno Gonzalez para a Dragon Magazine nº18
Traduzido por Tadeu Marinho

O Aikido nos permite ir além de nossas limitações, ou é uma ferramenta de divisão suplementar? Neste culto texto, Bruno Gonzalez nos questiona sobre a concordância entre as injunções do Fundador do Aikido e nossas ações.

Palavras de Morihei Ueshiba:

Morihei Ueshiba, criador do Aikido.
Morihei Ueshiba, criador do Aikido.

“O Aikido não decide entre coisas boas ou más.” 1

“Assim que você julga o ‘bem’ e o ‘mal’ de seus semelhantes, você cria uma abertura em seu coração para que a malícia entre.” 2

“Entrar em competição e criticar os outros enfraquece e derrota você mesmo.” 2

“O Aiki não é uma técnica de combate para abater e derrotar o inimigo, é para o mundo uma via de reconciliação a fim de que os seres humanos formem apenas uma grande e única família.” 1

“O Aikido é a não-resistência. Como ele não é resistente, ele é sempre vitorioso.”. 2

“Ganhar significa superar o espírito de discórdia que está em você.” 1

“O verdadeiro Budo protege todos os seres com o espírito de reconciliação.” 1

Organizar estas palavras, fazer a escolha de classificá-las uma antes ou depois das outras, isto é, pensar em uma cronologia, é inevitavelmente criar uma vínculo entre elas, acima de tudo, correr o risco de modificar seu significado original… No entanto, para resumir, parece-me aceitável dizer que o Aikido é uma via de pacificação no sentido amplo do termo, levantando a ilusão do “eu” separado em favor de uma consciência unificada. Eu vou me explicar, não se preocupe.

Realidade atual.

Seja conscientemente ou não, muitas pessoas que estudam Aikido, independentemente de sua graduação, ou seu nível de responsabilidade, gastam muito do seu tempo alimentando conflitos internos e rivalidades, em outras palavras, certas formas de negatividade corrosiva antropofágica.

Aqui estão alguns exemplos:

Essa não é a minha abordagem (ou escola), então eu encorajo fortemente meus alunos a não frequentá-la, o que pode ir tão longe quanto falar mal, ameaçar e boicotar.

Um amigo discordou do meu ponto de vista, então eu o rejeitei.

Eu gostaria de participar do seminário de um determinado sensei, mas estou em rivalidade com a pessoa que o organiza …

O aluno, o vizinho, o amigo, o inimigo, o estrangeiro fez isto ou aquilo ontem ou há 30 anos atrás… criando a ocasião ou oportunidade para fazer comentários sobre ele, rumores e fofocas, insistindo em ferir seus sentimentos e o ofuscar, fomentando a injustiça, continuar louco, por exemplo, culpando o bastardo que roubou nosso saco de bolinhas de gude quando tínhamos cinco anos, em suma, persistindo em revirar os mortos.

Eu não quero desencorajá-lo com muitos exemplos, mas para aqueles que querem mais, basta olhar-se no espelho! E se isso for demasiadamente difícil, olhe para o do seu vizinho.

Mesmo que eu esteja exagerando voluntariamente o cenário, todos concordarão que as palavras de O’Sensei diferem daquilo que um aikidoca experimenta como realidade no dia a dia.

É bastante natural que cada um, por suas inclinações, favoreça e seja atraído por certas situações mais do que por outras. É necessário e funcional desenvolver e manter um relacionamento conflitante, crônico, surfando em uma onda de negatividade?

Se eu gosto de maçãs, eu como maçãs, se eu detesto ou tenho dificuldades para digerir espinafre eu não os compro. Não há julgamento de valor entre maçãs e espinafre, apenas uma inclinação para um ou outro: não tenho rancor, nem sopa 6 psicológica, em relação ao espinafre.

A pergunta mais importante a ser feita é: nossa prática de Aikido ajuda ou reduz notavelmente os conflitos internos e as situações conflitantes ao nosso redor? Se a resposta for “Hmmm…”, então, temos que admitir que perdemos parcialmente, se não completamente, sua essência ou propósito.

Por que tais conflitos?

Para a maioria de nós, existir significa afirmar nossa individualidade e identidade e, geralmente, devemos admitir, em detrimento de outros. Isso gera um sentimento de separação e dualidade. Ao mesmo tempo e paradoxalmente, sentimos uma necessidade crônica e viciante de reconhecimento, porque o sentimento de separação gera carência e profunda insatisfação.

Para compensar essa insatisfação, mergulhamos em ações ilimitadas (filosóficas, religiosas, espirituais, artísticas, científicas …).

“Aquele que perdeu sua eficiência devido à ignorância de nascimento aspira a múltiplas tarefas.” – Spandakarika

O que constitui nossa “individualidade ou personalidade”?

A espinha dorsal de nossa identidade é, antes de mais nada, o patrimônio genético cuja natureza profunda todos compartilhamos; mas sua estrutura, interações e expressão são diferentes.

Assim, a plasticidade de nossa personalidade é delineada, e articulada em torno de arquétipos, uma massa de crenças, condicionamentos, ilusões, desilusões, consciência coletiva, experiências, … memórias.

Memórias que o sentimento do “eu” renova a cada momento.

Portanto, nossa visão do mundo nada mais é do que o reflexo do nosso estado de consciência. Nós não percebemos os objetos como eles são, mas como nós somos. Em outras palavras, quando um batedor de carteira encontra um homem sábio, ele vê apenas os bolsos.

Simplificando, entendemos que, se todos identificam-se apenas com suas próprias crenças, o conflito com as crenças dos outros é inevitável. Na superfície, pode haver um debate de idéias, mas em profundidade, há uma luta por identidade que cultiva insatisfação e um medo recorrente mais ou menos declarado.

É por isso que temos uma certa tendência a cultivar, reivindicar e dogmatizar fortemente nossa identidade.

“De acordo com nossa posição como observador, do ângulo do ponto de vista, nosso grau de ansiedade difere.” – Michel Cassé

Bruno Gonzalez.

Gastamos nosso tempo “correta ou incorretamente” nos protegendo e nos justificando de todas as formas possíveis e imagináveis, desde as mais sutis até as mais óbvias. Não importa de que lado da trincheira estamos, continuamos presos nessa negatividade que é constantemente alimentada.

Isso não é novidade, você poderia dizer.

Mas é ainda mais irritante quando percebemos que esse é o caso, mesmo para aqueles com altos níveis de experiência técnica, influência e responsabilidade nas artes que apontam exatamente na direção espiritual oposta.

Assim, podemos legitimamente perguntar a que propósito o ritual, a ferramenta de realização, que é o Aikido serviu?

A resposta é simples, reforçar e proteger a sensação de um eu separado que está tentando resistir à mudanças e circunstâncias aparentemente inseguras.

O discurso ou propósito universal do Aikido (etimologicamente: voltado para) é assim reduzido a interesses “pessoais”.

Nesse sentido, a imagem do Aikido transmitida por O’Sensei perde credibilidade.

Permita-me uma comparação sensível e sucinta com as religiões (etimologicamente: conexão com o sagrado). Todas elas aspiram aos mais nobres ideais e têm por vocação última o desenvolvimento, o despertar do ser humano pelo reconhecimento de sua natureza profunda: Deus, energia, vibração, a “totalidade”… manifestando-se de diferentes maneiras.

Para atingir seu objetivo, as religiões desenvolveram diferentes rituais ou ferramentas para o despertar, portas de entrada.

“Minha especialidade é tornar visível o invisível e invisível o visível.”
Marcel Marceau

“Se você não tiver fé, faça gestos de fé e a fé virá.” –Santo Inácio de Loyola

Em outras palavras, a água despejada em um vaso toma a forma do vaso que a armazena.

Um dos principais mal-entendidos (como em muitas práticas, sejam espirituais, artísticas ou outras), é que pouco a pouco o discípulo se identifica com os rituais transformando-os em dogma, tornando-se mais ligado à própria ferramenta do que ao princípio e fechando portas que deveriam estar abertas. O que fazer? Tome consciência de certos padrões e deixe a prática se reorientar.

“Os problemas significativos que enfrentamos não podem ser resolvidos no mesmo nível de pensamento em que estávamos quando os criamos.” – Albert Einstein

Devemos nos tornar plenamente conscientes da insatisfação existencial crônica que precede, acompanha e segue nossas “escolhas” e observações. É crônica e camuflada, mas às vezes pode ser sentida com antecedência. Devemos nos conscientizar do sofrimento desse vazio de identidade que tentamos esconder atrás de mil e um disfarces.

Quando a humildade aumenta, marca o começo da mudança.

O Aikido, como um espelho, pode fazer isso acontecer.

Alguns pontos concretos para reflexão.

O importante não é a técnica, mas a relação que tenho com ela: o que eu faço com essa técnica.

Nós usamos técnicas apenas para proteção, para nos proteger de um ambiente potencialmente hostil?

Inicialmente, usamos técnicas como estruturas de proteção para responder a uma prioridade imediata (como um ataque) e, ao fazê-lo, adquirimos um certo nível de confiança. No entanto, essas mesmas estruturas acabam tornando-se uma limitação, na medida em que, mesmo que o problema tenha sido “resolvido”, na maioria das vezes, elas sempre ecoam em um problema a ser resolvido…

O objetivo é então passar de uma prioridade para um princípio, de uma visão parcial, alterada, de emergência para uma visão global baseada em um todo. Podemos então descobrir que o kata foi modificado e que outras opções aparecem. Isso é mais um posicionamento mental do que técnico. Quando vemos a constante, uma nova confiança pode emergir naturalmente.

Pedagogicamente, parece-me importante desde o início tornar explícita a noção de um princípio, mesmo em formas básicas que são externamente “padronizadas”.

Exemplo: entrada externa para Yokomen uchi. Inicialmente, toda a nossa atenção (visão) está focada na ideia de bloquear o ataque. Posteriormente, é uma questão de aprender a redirecionar essa atenção para uma constante: o eixo do parceiro. O espírito do Aikido é passar de uma visão fragmentada para uma visão global.

O ensino baseado apenas em técnicas condiciona as pessoas a se concentrarem em uma resposta específica a uma situação específica? Dependemos irremediavelmente de códigos necessários dentro da prática para estabelecer situações de uke-tori?

Há uma repetição de situações diferentes que permitem materializar princípios comuns, ou incentivamos uma repetição mecânica de situações idênticas?

Essa dependência e ligação a códigos, em última análise, são apenas tentativas de garantir a segurança e perpetuam a tensão porque exigem condições específicas para uma alcançar uma resposta.

Tomemos o exemplo do soto kaiten nage.

Aquele que se concentra em puxar o braço para organizar seu movimento, na verdade, depende da presença desse braço (uma característica flutuante da situação …) e sua ação sobre ele. Considerando que se a ação (física e mental) é organizada em torno de uma constante (o eixo do parceiro), se o braço está lá ou não, isso não condicionará a viabilidade do movimento, nem afetará seu próprio posicionamento mental. (Este exemplo refere-se ao soto kaiten que Christian Tissier demonstra sobre um uke cuja intenção é apenas avançar, seguir em frente).

Para resumir, se eu me basear em entrar (o que geralmente é uma reação) em circunstâncias aleatórias, como posso desenvolver confiança, calma e uma visão global?

Pelo contrário, se eu basear o processo em uma constante, a incerteza de uma situação em mudança perde em grande parte seu poder ameaçador e o seu gerenciamento torna-se mais fácil. Além disso, um movimento construído sobre um princípio exigirá cada vez menos condições a serem realizadas.

Pedagogicamente, mais uma vez, as condições para iniciar e estabelecer uma estrutura básica devem apontar para um princípio, uma constante: o sagrado. Eles não devem se transformar em formas fossilizadas e santificadas.

“Estamos todos conectados. A separação é uma ilusão de ótica da consciência.”
Albert Einstein

Não poderíamos transpor este princípio?

Em vez de nos sentirmos atacados ou ameaçados pelas diferenças ou especificidades de situações (culturais, sociais, étnicas, ideológicas …), não poderíamos, antes de mais nada, reconhecer à nossa natureza comum, a constante? Isso não apenas tornaria nossas diferenças mais aceitáveis, como não seria mais visto como um problema, mas como outra expressão e celebração de nossa, assim chamada natureza, e sua paleta de cores. A virtude de nos tornarmos conscientes disso é que podemos viver plenamente e nos regozijar com essas diferenças, porque não atribuímos mais nossa identidade a elas. O sutra do diamante4​ expressa-o perfeitamente neste verso: X não é X, é por isso que eu posso chamá-lo de X (x sendo capaz de ser substituído por qualquer coisa).

Aqui está uma mensagem de amor e compaixão: o reconhecimento da nossa natureza comum, da nossa inseparabilidade. Utilizamos as técnicas como meio de comunicação pacifista? A atitude marcial que consiste apenas em dominar, restringir e fazer com que o parceiro se submeta física e mentalmente ao medo, à medida que aumenta a adrenalina, parece-me cada vez mais fragmentada. Numa perspectiva humanista, parece-me que a cultura está sendo mal permeada.

Mesmo que tenhamos a sensação de ter resolvido um problema, ao impor nosso ponto de vista, apenas o repetimos, alimentamos e, pior ainda, deixamos um traço de tensão e medo em nós mesmos e nos outros: uma impressão pessoal considerando uma diferença como problemática. Isso condicionará situações futuras dentro e fora do tatame.

E se considerarmos o inverso, o outro não como um problema, um adversário, mas como uma solução, um “parceiro”, uma fonte de informação para novas percepções favorecendo uma atualização funcional de nossas habilidades. Os braços não seriam mais reduzidos à simples função de escudo protetor, refletindo medos e agressividade, tornando-se (evoluindo para) ferramentas sensoriais táteis.

Migraríamos de um modo de recusa à um modo de comunicação, no sentido de que nossa prática visaria nos tornar mais sensíveis, mais perceptivos às situações do momento em que desenvolvemos qualidade de presença, portanto, consciência e harmonia.

Nossos movimentos harmoniosos seriam calmantes e uma fonte de alegria, o oposto daqueles que despertam medo e tensão.

“Muitas vezes o medo de um mal nos leva a algo pior.”
Boileau

“Precisamos aprender a ver e ouvir, não ver algo ou ouvir algo. Impor o ponto de vista é a ditadura, por outro lado, ensinar alguém a tornar-se sensível é, estritamente falando, uma arte tradicional. ” – Eric Baret

Tornar-se sensível é tornar-se consciente, estar consciente é despertar a sua própria sensibilidade. Desta forma podemos nos dar a chance de vislumbrar a natureza comum e fundamental de todas as coisas, maravilhar-se e apaziguar a si mesmo.

Para não densificar demais este artigo, concluirei com uma observação de Zeami Motokiyo, dramaturgo e teórico japonês do teatro Noh, que comenta a diferença entre um ator muito bom e um excelente ator, aquele que se destaca:

No teatro Noh, um código gestual (uma posição da mão) significa que o ator está olhando para a lua. O bom ator, diz ele, executará um gesto muito claro e expressivo, deixando o público admirado com a beleza do personagem…

O ator excelente se destaca por desaparecer aos olhos do público trazendo para eles a própria lua.

Devemos enxergar a beleza do princípio revelada através do Aikidoka, em vez de sua tentativa vã e frenética de apropriação.

O conflito interior que se instala em nós vem do fato de que nós tomamos as coisas de forma pessoal, e nossos pontos de vista refletem apenas às nossas limitações.

Se nos tornarmos conscientes disso, então podemos aceitar que todos têm “razão para agir” de acordo com suas próprias circunstâncias, limitações e inclinações. Isso não impede que alguém defenda a sua própria vida, mas isso é simplesmente uma ação, livre de qualquer negatividade parasitária crônica, sem fermentação psicológica: não há nada “pessoal”.

Aceitamos fundamentalmente a situação e agimos mais ou menos de acordo com nossas inclinações. No final, algo acontece, mas não nos fixamos nela. O problema não é o objeto, mas a relação, a resistência durante o tempo, que eu mantenho com ele ou não.

“Não é uma questão de corrigir os outros, mas corrigir o próprio coração, isso é o Aikido.  Esse é o propósito que o Aikido fomenta e esta deve ser sua missão”. – O’Sensei.

Biografia Bruno Gonzalez:

Iniciou o Aikido aos quinze anos de idade em Bordeaux. Com dezoito anos, mudou-se para Paris para dedicar-se totalmente à disciplina com Christian Tissier, enquanto continuava seus estudos. Ele praticou em paralelo boxe tailandês e jiu-jitsu brasileiro. Hoje ensina no Cercle Tissier e dirige diversos estágios nacionais e internacionais.

Referências:

  1. Words of the Founder
  2. The Art of Peace, translated by John Stevens
  3. Albert Einstein
  4. The diamond in the diamond in the diamond
  5. Memoir of the Master, by Morihei Ueshiba with commentary by Stanley Pranin
  6. Bouillabaisse é uma tradicional sopa de peixe provençal proveniente da cidade portuária de Marselha.

Artigo traduzido e publicado com autorização do prório Bruno Gonzalez. Texto original escrito em francês está disponível em seu site.