Ensinar é um gesto de amor

Georges Stobbaerts, fundador da escola TenChi International.

O papel do Sensei (professor) é insubstituível. É ele quem deve despertar, no aluno, o gosto da procura e mantê-lo. O caminho que o aluno percorre está repleto de obstáculos. Frequentemente, tem a tentação de parar a meio do caminho, pois julga já ter compreendido tudo e chegou ao seu termo ou, então desencoraja-se quando das primeiras dificuldades.

“A flor, durante o seu crescimento, esforça-se por se alimentar, luta para sair da terra e desabrochar.”

Ensinar é criar uma dinâmica que conduza o praticante ao movimento, no prazer da descoberta e, em seguida, no prazer da procura. É gerar um clima na partilha e na transmissão daquilo que se ama, orientando o aluno para a autonomia que é dada pelo estudo, compreensão e corporalização das técnicas, enquanto ator e não consumidor.

“Ensinar não é encher uma taça, é atear um fogo.”

Grandes mestres sempre respeitam uma das mais importantes regras das artes do Buda: o Silêncio. Quando se executa um movimento, ele desenha no espaço uma simbólica que não se pode desvelar…, esta não pode ser inscrita num método ou numa escola, pois os símbolos estão inscritos no homem e cabe a ele revelá-la por meio da sua prática. Os gestos respondem a uma ciência da energia que molda o espírito. O silêncio, o não estar sempre a explicar, convida o praticante a procurar por si e em si mesmo. A não compreensão apela à experiência, único meio de Conhecimento.

Hoje, a educação consiste em explicar. Ela intelectualiza-se e o aluno “recebe pela cabeça” e não pela totalidade do seu corpo. Na arte do movimento, o não verbal é muito importante, embora também haja espaço para a palavra.

O sentido profundo do ensino, direi mesmo, a sua essência é nada! Pois trata-se de entrar no nada e libertar o espírito para mergulhar no Vazio que vai abrir as portas para uma verdadeira sabedoria interior. É uma pedagogia que nos leva a mergulhar na experiência, de modo a que esta seja assimilada pelo corpo. Para observar um movimento é necessário abrir o corpo. Quanto mais o aluno conseguir abrir as suas “portas” mais o professor pode dar, ensinar.

Questionado sobre a técnica, um professor deverá tentar explicar o papel que esta representa na arte do movimento, pois, aqui, não se trata de desempenho ou “performance”. De que é que serve falar da técnica, da Beleza do movimento, se não for para tentar, através dos mesmos, levar o homem ao melhor de si mesmo? Para isso, é preciso voltar ao essencial, ou seja, à relação que une os seres.

Se a prática das técnicas não for feita mecanicamente, origina aprofundamentos progressivos, em forma de pensamento “espiralado”, onde algumas repetições inevitáveis são extremamente ricas devida à troca e ao diálogo entre o espírito e a técnica. A prática deveria permitir-nos encontrar uma sabedoria instintiva do corpo, uma pacificação e uma não violência do pensamento. Estes princípios da não violência nasceram no espírito de alguém que, um dia ao observar os ramos de um pinheiro, constatou que estes se quebravam sob o peso da neve, enquanto simples bambus, mais fracos, mais flexíveis, saíam vitoriosos desta prova. Está flexibilidade e esta não resistência são as bases da arte do movimento, principalmente das artes do Budo.

Frequentemente, somos “quebrados” pelas circunstâncias, pois resistimos à lei da vida. Deixamos de estar adaptados. Já não possuímos a calma, a flexibilidade física nem a agilidade mental desordenada que nos permitam responder adequadamente às circunstâncias. A atividade mental desordenada e a imaginação demasiado fértil separam-nos do mundo exterior. Perdemos o rasto da sabedoria instintiva. Numa prática levada a cabo com vigilância, observa-se aquilo que vai provocar ou redescobrir os reflexos corporais adormecidos de uma sabedoria instintiva religada à natureza profunda de todas as coisas e do seu próprio ser.

“Nunca nada está acabado, nunca nada é adquirido.”

Na prática, não nos devemos deixar levar pela rotina. O movimento não se insere no automatismo, ele é sempre novo. Se achamos que adquirimos algo, regredimos. Isso é verdadeiro para o movimento, o amor, para a vida em geral. O aluno deve estar sempre disponível e colocar-se em questão, caso contrário, instala-se a rotina e estaciona. A via é uma corrente de água viva. Deixemo-nos levar por esta corrente, sem procurar abrigo nas margens do nosso egoísmo, sem procurar agarramo-nos às raízes emergentes dos nossos desejos. Mergulhemos nesta água sempre pura e renovada, permitindo que a sua corrente nos conduza em direção a novos mundos. Se permanecermos nas margens, imobilizamo-nos.

Ensinar não é impor uma imagem de si mesmo, mas sim criar múltiplas situações de experimentações e de questionamento que vão dar um sentido à prática: o que é que permite o movimento? O que é que o anima, o justifica? O que é um movimento coerente, verdadeiro? Aonde é que ele nos conduz? O movimento é veículo da beleza, espiritualidade, energia (ki), amor ou da própria vida? O ensino propõe chaves, permite construir pontes, abrir portas e criar possibilidades, participando, assim, na Transmissão.

Chegará um dia em que o professor não estará mais presente fisicamente. É necessário que deixe aos seus alunos sementes essenciais, tais como, mensagem de harmonia, paz e amor. Por outro lado, o aluno deverá passar a “tocha” às novas gerações de modo a não deixar extinguir a mensagem universal da arte do movimento. Esta mensagem veicula valores universalmente reconhecidos: respeito pelo outro; ação justa; resolução de conflitos por meio do diálogo; esforço de compreensão do outro; trabalho sobre si mesmo; eliminando progressivamente a afirmação egóica.

A arte do movimento é uma via a seguir com o intuito de metamorfosear as intenções voluntárias em trabalho de construção ou de reconstrução do corpo e da alma. O movimento é um processo de procura, de exploração da consciência através do corpo e graças ao seu suporte. Criar movimentos centrados, bem posicionados com a única intervenção dos princípios motores elementares, como por exemplo, deslocar-se no espaço, elevar os braços, rodar a anca, levantar o corpo e baixá-lo leva o praticante a encarar a sua existência numa perspectiva harmoniosa.

À semelhança da música que nos entra pelo ouvido (mas não só!) propagando-se até ao mais profundo do nosso ser, fazendo, aí, vibrar a corda sensível, a arte do movimento, com os anos de prática, enriquece-nos em profundidade, tornando-nos sensíveis à escuta da nossa alma. E o local de prática (Dojo) é o espaço onde se criam as condições para que todos possam progredir.

Há muitos anos, escrevia: “o principal é continuar”. No início da prática, é a alegria da descoberta, mais tarde, esta pode tornar-se fonte de dificuldade e de interrogação que são desafios a ultrapassar, tais como: a ferida do ego; o professor é uma interpelação permanente através do movimento; a extrema simplicidade e a grande complexidade do movimento e o caráter não repetitivo do ensino, mesmo repetindo, frequentemente, os mesmos movimentos.

Em relação ao continuar, claro que por vezes é necessário um distanciamento. “Continuar” não é praticar de uma maneira rígida. Por vezes, é necessário praticar com uma intensidade particular. A continuidade não é monotonia, mas sim renovação da prática por meio do seu aprofundamento. O praticante pode tocar uma pequena parcela do movimento verdadeiro que irá frutificar através de uma constante procura do gesto verdadeiro e escutando a sua voz interior. A arte do movimento é uma via de harmonia, de fusão e de encontros sublime entre corpo e alma.

Livro escrito pelo mestre e fonte do texto acima.

Da Minha Alma à Tua Alma

Livro escrito pelo Mestre Georges Stobbaerts

Georges Stobbaerts (1940-2014), de origem belga e nacionalidade portuguesa, nasce em Casablanca (Marrocos). Especializa-se em Bioquímica na Bélgica (1961). Fascinado pelas artes do Oriente, pratica com mestres japoneses que o iniciam na meditação Zen e com mestres indianos com quem aprofunda o Yoga.

Fundador do projeto TenChi, centro cultural de investigação nas artes e no movimento – com sede em Sintra (Portugal), onde ensinou várias artes do movimento como Yoga, Aikido, TenChi Tessen, a meditação, o teatro entre outras disciplinas; escreveu diversos livros e textos sobre o movimento e a espiritualidade, sempre estabelecendo pontes entre culturas e tradições.

Editora: —
Autor: Georges Stobbaerts
Ano: 2020
Número de páginas: —

Aikido: Harmonia do Corpo e do Espírito

Livro escrito pelo Mestre Georges Stobbaerts.

“Em Georges Stobbaerts encontrei, mal o conheci, esse espírito de não proveito. É por isso que não parou de evoluir, apesar das dificuldades de sua vida.

Este livro assim como sua estadia em Portugal é uma etapa importante na progressão do seu ensinamento. Gostaria que pudessem lê-lo para lá da escrita. Cada leitor, do neófito ao já iniciado (antigo praticante) poderá nele encontrar aquilo de que precisa no momento exacto. Mas gostava de retirar dele três características que poderão guiar-vos no vosso estudo.

A primeira, de base, é a competência e o sentido pedagógico com os quais o Aikido é apresentado. O autor conhece profundamente as técnicas, o que é o mínimo, mas muito para além disso vive o Aikido com todo o seu sopro, todas as fibras do seu ser, corpo e espírito totalmente unidos.

A segunda característica, corolário da primeira é o amor. Amor pelo Aikido, mas também pelos alunos e discípulos e através deles, da natureza e do cosmos inteiro. Este já é mais difícil de conhecer e compreender pois trata-se de um amor que não é condescendente, antes pelo contrário; rói, por vezes irrita e pode ser a fonte de conflitos passageiros. Mas é construtivo, activo, vivo. Através da arte, através da pessoa humana atinge a vida cósmica. Verdadeira pedra filosofal, transmuta com sua alquimia secreta, ao mesmo tempo o aluno em discípulo e o professor em Mestre. Ainda que se dirija a todos sem distinções, nem a todos é dado conhecê-lo profundamente. É preciso que da parte do aluno haja esforço, paciência, uma prática infatigável, uma humildade suficiente e à medida dos esforços, da paciência, da prática e da humildade do Mestre.

A terceira característica deste livro é que o ensinamento que nele encontramos não tem nada a ver com uma aula da universidade ou da escola técnica. Se o consideram como tal não verão nele mais que um lado superficial incompleto e insuficiente.

O Mestre não ensina: antes quer que refaçam sua própria experiência. Faz-vos primeiro mergulhar até ao tutano dos seus ossos, até o mais profundo de si próprio. Convida-vos em seguida com suavidade, mas não sem firmeza, com vigilância, mas apagando-se a si próprio, a ultrapassarem-se constantemente através da vossa acção pessoal. Faz-vos, sem que se apercebam, descobrir por vós próprios a verdadeira natureza das coisas. É por isso que, durante o caminho a percorrer, muitos alunos, mal atingiram um certo resultado técnico, têm tendência a pensar que sabem tudo e que descobriram tudo sozinhos. Então, para que serve o Mestre, perguntam eles? Persuadidos de que não aprenderam nada com ele, segundo um processo psicológico bem conhecido, abandonam-no, fechando-se num desejo ilusório de independência e chegam mesmo a combatê-lo. Todos os Mestres passaram por este gênero de provas que são, mesmo para os maiores de entre eles, um profundo sofrimento. Sofrimento não de uma esperança ou de um afecto frustrado, mas de pena de ver permanecer estéril um grão que poderia germinar, de ver desperdiçar energias que só precisavam de se desenvolver, de ver triunfar momentaneamente um <<ego>> que deveria ter-se vencido a si próprio, de ver atrasar o momento de um acordar verdadeiro para a vida cósmica. Apesar da dor interior o Mestre permanece atento e benevolente, mesmo se tem por vezes de fingir-se irritado e espera pacientemente que o momento em que o aluno possa enfim tornar-se discípulo, se apresente de novo.

Onde há um discípulo há um mestre.”

Dr. Claude Durix.

Artes Marciais, a Procura da Via Perfeita

Meste Georges Stobbaerts, fundador da escola TenChi Internacional.

Neste excelente documentário totalmente em português datado de 1974, João Martins explora o sentido mais profundo das artes marciais abordando diversas práticas como o Karaté-Dô, Kendô e o Aikidô.

Em grande parte deste filme podemos desfrutar das palavras do Mestre Georges Stobbaerts e também de alguns belos momentos de prática com mesmo.

“A finalidade das artes marciais é de narração muito morosa. Seriam precisos meses, um pouco como na música. Como definir uma arte? É coisa que demora muito. Penso que a finalidade das artes marciais é descobrir o nosso verdadeiro ego, a vida corrente, o tempo moderno. Vivemos frequentemente num mundo cheio de agressões e creio que pela prática das artes marciais podemos atingir o âmago deste turbilhão atual, uma forma de equilíbrio interior. A finalidade é a vitória sobre si mesmo.” Georges Stobbaerts

Fonte: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/artes-marciais-a-procura-da-via-perfeita/

Carta para os Principiantes

Georges Stobbaerts

DO, o caminho do conhecimento de si mesmo.
A Via é ligar-nos à dimensão de sabedoria que nos habita.

Aquele que se volta para o Caminho – «Do» – sente no fundo de si mesmo um chamamento: a necessidade de conhecer o seu ser profundo, de descobrir a sua verdadeira natureza. Então, para ele começa um longo caminho.

Mas, primeiro é preciso a confiança – em sânscrito: shraddha -. Tudo emana dela e sem ela nada é possível. É o elo que nos permite crescer. O testemunho daqueles que estão mais avançados no Caminho, existe para nos esclarecer. Mas, acreditar nas suas palavras exige, primeiro, escutá-las. De um modo confuso, já pressentimos a realidade da nossa dimensão espiritual, mas a ajuda de um ancião – em japonês «Sensei»- é necessária para nos guiar neste caminho de interioridade. Portanto, a atitude justa consiste em dar a sua confiança, de modo a poder acolher o ensinamento.

A Via é progressiva

Na Via, deve dar-se tempo ao tempo! Da mesma maneira que não se pode arrancar as raízes de uma árvore para que ela cresça mais depressa. Este voltar-se para si mesmo necessita de tempo, de paciência e de perseverança. É um longo trabalho, um campo a cultivar sem descanso, e sem forçar. É tudo uma questão de dosagem. Não é pela força que se transpõe a entrada que conduz ao coração de si mesmo! Pouco a pouco, a tomada de consciência desta dimensão interior instala-se mais frequentemente e durante mais tempo. As quedas são sempre possíveis, se a vigilância não for mantida. E, para cúmulo da ironia, não só não estamos seguros do resultado de tudo isto, como também devemos saber que os frutos produzidos por este ensinamento quotidiano, deverão ser abandonados.

Apegarmo-nos à descoberta fácil, à felicidade passageira e à paz saboreada de tempos a tempos, torna-se uma armadilha, se queremos guardá-las e possuí-las a todo o preço. Digo- vos: «viajai leves e tereis maior probabilidade de chegar.», se tropeçais num obstáculo, deveis levantar-vos, continuar e recomeçar utilizando todos os meios que estão à vossa disposição, pois o essencial é continuar

Os meios para avançar

As artes do Budo são ferramentas preciosas com múltiplas facetas. As técnicas, o domínio do sopro, a concentração, a meditação e o estudo dos textos clássicos são o caminho obrigatório em direcção a um único fim: a descoberta do nosso ser profundo. Aí, no mais intimo de nós mesmos, encontra-se a nossa verdadeira natureza, em germe e à espera de ser desenvolvida, de ser libertada. Mas, os obstáculos encontrados são inúmeros e dificultam o caminho.

O nosso trabalho consiste em suprimi-los ou contorná-los. A prática é o desempoeirar necessário que deve ser levado a cabo regularmente, pois a poeira obscurece esta luz interior, impedindo-nos de ver claro. No Budo, encontram-se diferentes meios, muitas variedades, estilos diferentes e felizmente que existe tudo isto, pois somos todos diferentes e o Budo toma em consideração a individualidade. Cada um começa por procurar, em seguida, encontra as direcções que lhe interessam, que lhe dão prazer, que o ajudam a progredir, e as proporções nas quais introduzirá tal ou tal actividade na sua prática.

A importância da leitura

Para aquele que procura, se a prática não contém um suporte de estudo dos textos, isso não será suficiente. Para a maior parte dos nossos praticantes, isso parece inútil e desprovido de sentido. Contudo, desde o início que nos encontramos face a nós mesmos, e nesta primeira etapa existe uma certa confusão, então, novos pontos de referência devem ser encontrados.

Alguns irão preencher este vazio com um maior número de técnicas, mudando de estilo, ou de escola. Mas, com o tempo eles encontrar-se-ão num «parque de estacionamento». Mudar de técnicas sem se mudar a si mesmo é um erro! Porque, aquele que não possui uma intenção pura não evoluirá. O ego será rei e obscurecerá ainda mais a sua verdadeira natureza.

Na via, tudo é aprender, tudo é difícil. Graças à experiência compreende-se melhor o principiante e é preciso pensar judiciosamente nos mecanismos de aprendizagem, os quais devem ser, progressivamente, colocados em prática. Depois, passo a passo, saímos da confusão, e como o Zen nos diz: «No início o rio não é mais o rio, a montanha não é mais a montanha; depois do estudo, o rio torna a ser o rio, a montanha torna a ser a montanha.» As coisas clarificam-se, um começo de sentido desenha-se no horizonte. A prática torna-se «abrir mão de». Quando estamos ligados a nós próprios, a prática é o verdadeiro Budo. A leitura, os textos habitam-nos. Eles disponibilizam-se para nos ajudar a compreender o mundo, a agir com discernimento, a escolher a Via que nos conduz à descoberta de Si próprio.

Todos estes esforços servem para quê?

Se é verdadeiro que o Caminho apresenta-se-nos, por vezes, longo e tortuoso, não é menos verdadeiro que alguns benefícios chegam rapidamente: melhoramento da condição física e bem-estar fazem-se sentir. Devemos aproveitar e saborear estes instantes em que o corpo se relaxa, tonifica-se, desabrocha e liberta-se. Mas, os belos dias nem sempre estão presentes, e de tempos a tempos, alguns problemas de saúde vêm romper a harmonia. Contudo, se mergulharmos no nosso centro, aquilo que se agita no exterior perda a sua influência, e reencontramos um lugar ao abrigo dos tormentos exteriores, um local de paz inalterável. Existe, em cada um de nós, uma profunda interioridade por descobrir, um espaço interno, o lugar do Ser.. Cada um encontrará o nome que lhe quiser dar, pois esta realidade onde tudo é sereno, imutável e eterno ultrapassa as palavras. Sabeis que no centro do som existe um Coração? !

Quando a perturbação física é pequena e passageira, este lugar pode parecer acessível. Mas, quando a doença é mais grave, incurável será possível atingir a paz? Podemos ter uma doença muito grave, como por exemplo um carcinoma, e responder tranquilamente: «Eu estou bem, mas este corpo passou uns maus momentos..» A doença é o primeiro obstáculo ensinado por Patanjali1, que o menciona nos seus aforismos: Y.S.1.30: «A exploração subtil do nosso ser interior, acompanhada de uma grande lucidez a nosso respeito, pode ajudar-nos a atenuar o nosso sofrimento»; Y.S.1.36: «Finalmente, trata-se de não confundir a nossa verdadeira natureza com aquilo que sentimos.»; Y.S.1.37: «Colocar-se aí, no centro de si mesmo permite- nos aceitar melhor as patologias que não podemos fazer desaparecer.»

No Budo, como no Yoga o meio proposto para atingir o estado de paz interior, consiste em dar o seu melhor, desapegar-se dos frutos da acção e aceitar aquilo que nos ultrapassa. Esta atitude quotidiana de abertura ao mais profundo de nós mesmos, supõe o abandono do ego a uma força superior.

Ao nível das tensões psicológicas, a procura deste lugar habitado pelo nosso ser profundo, é algo que vai permitir ao homem distanciar-se das repetidas agressões provenientes do meio que o rodeia. A tomada de consciência deste «Princípio Interior» permite relativizar os acontecimentos, desdramatizar as situações quotidianas e, porque não, desenvolver o humor em relação às nossas reacções por vezes inadequadas. O melhoramento do nosso relacionamento com os outros torna-se palpável. Em vez de mergulhar nas acções intempestivas, impõe-se um tempo de paragem, que vai possibilitar a entrada em si mesmo. Nesse momento aparece uma evidência: «Sou livre de agir de uma outra maneira». E, neste espaço de liberdade e de verdade brota uma atitude, uma acção, uma resposta com mais amor, que permite avaliar e não fechar. Uma resposta que liberta dos automatismos.

Voltar-se para o interior reduz os obstáculos, muda o nosso olhar, a nossa escuta e traz à luz aquilo que é na realidade importante: este espaço onde fazemos a experiência do permanente e do inalterável. Progressivamente, podemos viver mais amiúde na consciência da nossa profundeza, que está disponível em todos os instantes e em todas as circunstâncias. Basta estar atento e abrir-se a essa nova dimensão. De passagem, compreendemos que a vida interior tem uma grande importância e, assim, o nosso caminhar torna-se mais credível e profundo. A unificação do nosso ser está em movimento e para quem o deseje, em breve, não restará mais do que um único objectivo a alcançar: a descoberta de si mesmo. Como descrever este plano profundo que nos caracteriza enquanto indivíduo? Uma presença espiritual? Será que é viver o instante presente sem estar prisioneiro do passado e do futuro? Será que é diferente para cada um de nós?

Na via diz-se que existe outra coisa além da mente. Esta outra realidade é superior à mente e é O Mestre. Ela penetra em tudo, é o Testemunha que nos habita. Os textos sânscritos antigos chamam-na de «drashtr» – «aquele que penetra». E diz-se: “é como dois pássaros no mesmo ramo da árvore, um come e o outro observa-o.”

Esta compreensão não é da ordem de um saber, mas sim de uma experiência psico- espiritual; ela enraíza-se na sua própria mutação, nos conflitos que conhecemos e nas respostas, simultaneamente, empíricas, pessoais, colectivas ou tradicionais que soubemos dar. Como Claude Gefre2 diz: «é da ordem do testemunha, e não do doutor». Este princípio espiritual está sempre ligado ao corpo, à materialidade. A sua paciente descoberta leva ao desapego, melhora a compreensão de si próprio e desenvolve o discernimento.

A prática do Budo conduz num sentido justo e leva-nos a tomar consciência da nossa verdadeira natureza: «Não sou nem o meu corpo, nem a minha mente com o seu cortejo de emoções e de reflexões. SOU!»

O estado último é a capacidade de distinguir a mente pacificada, que faz parte do plano material (mundo manifestado), da entidade que percebe que faz parte do domínio espiritual (não manifestado). Chegado a este nível de pura consciência, dá-se o desabrochar de um estado de felicidade e de paz. A liberação, a serenidade podem brotar. Este estado unificado é o verdadeiro estado do Budo: «mushin», em japonês.

Uma vida quase que não chega para realizar o difícil trabalho que acompanha a prática. Mas, que maravilha de perspectiva!

«Conhece-te a ti próprio e conhecerás o universo e os deuses» (Sócrates)

Boa Coragem
Georges Stobbaerts, Hanshi
Abril de 2005

1 Patanjali: sábio hindu, que viveu entre os séculos III e V da nossa Era. É-lhe atribuída uma das mais antigas obras sobre o yoga: Os Yoga-Sutra de Patanjali.

2 Claude Gefre, Michel Meslin, Maître et disciples dans les traditions réligieuses, Paris : éd.Cerf, 1990, p.222.

O Jardim TenChi

Entrada do Hombu Dojo da escola TenChi International na várzea de Sintra, Portugal.

O jardim de TenChi foi inspirado para, através das nossas práticas, reencontrarmos as raízes e elevarmo-nos para o céu. O betão invade-nos e deixa pouco espaço à natureza… Este jardim é ao mesmo tempo simbólico e espiritual… Não é o seu tamanho que conta.

Trabalhar no jardim é estarmos no mundo, é integrarmo-nos no Universo. Meter as mãos na terra é criar uma outra relação com a natureza, com a vida e, portanto, consigo próprio. É um laço bebido numa fonte comum, «a terra». Voltaire dizia «é preciso cultivar o seu jardim». Hoje mais do que nunca! Um jardim como o de TenChi é uma barreira contra a poluição e o stress pelas suas virtudes: as da Natureza, mas também a da sua dimensão contemplativa e de último recurso. O jardim possui esta qualidade de acalmar em profundidade as pessoas que estão saturadas do urbano. Podemos recentrar-nos, o jardim pode recolocar-nos no eixo. Ele torna-se como que uma coluna vertebral simbólica num modo de vida agitado. Esta ligação à Natureza está certamente inscrita na nossa memória celular. O perigo da cidade é afastar-nos dela. Compreender o jardim é viver a plenitude da vida, é ligar-nos de novo à terra, aos ritmos sazonais, aos ritmos cósmicos.

Desde os primeiros jardins, aparecidos na Mesopotâmia em 3000 AC e dedicados aos Deuses, até aos simples jardins medievais, cujas plantas serviam para curar o corpo e o espírito, e até aos jardins Zen, os mais espirituais, sempre o jardim teve uma essência divina. É um lugar sagrado nas diferentes culturas. O Paridaiza persa, o jardim paraíso que encontramos também na Andaluzia. O jardim do Éden, descrito na Bíblia: «Um rio saía do Éden para irrigar o jardim, dali dividindo-se para formar quatro braços» (Gen. 8-10). A alegoria do jardim da alma, o Cântico dos Cânticos, é igualmente uma maravilhosa ode à natureza divina.

O jardim permite despertar uma consciência das energias subtis. O jardim pode ancorar-nos, é uma necessidade humana. Nós, memórias de poeiras, somos infinitamente pequenos em termos do Universo. Nada existe senão por um momento. Nada se aguenta senão por um fio… vida/morte: gosto desta simbólica no jardim. A renovação é constante. Há algo de muito frágil: o que vemos a certa hora pode já lá não estar uma hora depois. O fio parte-se… Pequeno biótipo que procuramos preservar no jardim de TenChi, de uma maneira natural e, no entanto, pensada. O jardim tem uma ponta selvagem, louca, relaxante. O que, de resto, tem a ver connosco!

É um lugar de meditação e, evidentemente, de inspiração. Alegrias e tristezas fazem parte da nossa vida: é preciso passearmo-nos pelo jardim, é a melhor das terapias! Tentai! A natureza lava a tristeza e exalta a felicidade. Por acréscimo, dá também aos outros alegria. É verdadeiramente um elemento de equilíbrio de que todos precisamos. Os jovens alunos devem descobri-lo com um outro olhar do que aquele que, apressado pela prática da sua disciplina, por ele passa sem o ver. Dai-vos ao cuidado de o observar, escutai o vosso coração.

Acreditai que este pequeno pedaço de terra exige trabalho. Respeitai-o também. A natureza alimenta a vossa arte e a nossa arte alimenta a natureza, num vaivém, como uma doce respiração cheia de poesia. Vinde, por vezes, ajudar-nos à sua manutenção. A porta está aberta. O jardim é uma verdadeira lição de «lâcher prise»: está em movimento e nem sempre é possível dominá-lo. O jardim permite recuperar a confiança em si. É a relação primitiva que fascina: o vegetal aproxima-se do humano nos seus ciclos e na sua estrutura.

A natureza é um belo instrumento para melhor nos conhecermos. Ensina-nos a tolerância, porque ensina a aceitar a diferença. Certas plantas não podem coabitar, mas todas existem e felizmente. A natureza ensina-nos também a organização.

O jardim de TenChi transmite-nos a paz. As pedras têm a sua importância: elas correspondem a uma cosmologia bem conhecida do espírito Zen. Se eu me fundir na natureza, estou em paz com a morte… Faço parte do ciclo.

Este jardim, que criámos com os antigos da nossa Escola, desposou os contornos das nossas vidas. Percorrei-o sós de tempos a tempos! Regressai a vós próprios… Passai do jardim exterior ao jardim interior. É o que a natureza deste jardim vos propõe. É um magnífico instrumento de felicidade e de transformação. É o lugar onde o homem procura o seu lugar na natureza. É aqui que se encarna e se confronta enquanto jardineiro. O local é também um lugar de reencontro: consigo, com o outro e para lá de si mesmo.

É o lugar de todos os possíveis. Reentrando em relação com a terra e conhecendo-a, podemos perder muitos medos. Meter as mãos na terra é aceitar morrer. Tudo se pode abrir! É a terra e o húmus que no-lo ensinam. Para compreender o vegetal, é preciso compreender a terra. A terra alimenta o homem. O céu faz crescê-lo. É preciso que o homem tenha consciência disso. Ao utilizar adubos químicos, não alimentamos a terra. É uma terrível mentira. Antes a roubamos. A terra fecha-se.

Lembremos ainda que o jardim na sua dimensão sagrada é frequentemente uma aventura apaixonante. É preciso combinar estrutura e liberdade. A simbólica é importante. Os projectos devem estar em sintonia com uma alegria interior. Não é apenas uma questão de estética: isto reflecte-se na felicidade que cintila nos olhos de cada um. É o grande alimento do jardim de TenChi…

Georges Stobbaerts
Julho 2007

Conheça um pouco mais de TenChi através de fotos.

De novo o Dojo!

Hanshi Georges Stobbaerts, 8º dan Dai Nippon Butoku Kai e fundador da escola TenChi International.

Este artigo é dirigido aos Yudansha e Kodansha da Escola TenChi Internacional, qualquer que seja a sua disciplina 1.

São os alunos, e entre estes os “cintos negros”, que fazem “o lugar onde se pratica a Via”. Eles são os verdadeiros embaixadores da sua arte, mas também do lugar onde praticam a sua disciplina. O professor, o sensei ou o mestre, não são mais do que “o Guardião do Lugar”…

A minha concepção de um Dojo foi sempre a mesma desde a infância embora já não tenha hoje o espírito de um principiante, infelizmente…! Sem falar de filosofia nem de espiritualidade. O Dojo deve ser à partida um lugar onde o verdadeiro espírito seja, antes de tudo mais, uma procura do conhecimento de si mesmo. Considerando a grande pergunta “O que sou eu?”, trata-se sobretudo de aceitar o que somos no “aqui e agora”, para poder ir mais além e aí encontrar uma resposta no caminho da nossa prática. É também o reconhecimento do outro, dos outros… e das necessidades de cada um. É preciso saber também que existe no Homem uma vocação inata, por vezes escondida: “ajudar o próximo”.

A nossa prática deve conduzir-nos, seja a guardar seja a fazer nascer, o ideal que garanta o desabrochar “de si” e dos que nos rodeiam. Um Dojo deve ensinar a dissolver os conflitos da mesma forma que as nossa técnicas transformam os ataques em não-funcionais. É necessário, no Dojo, equilibrar as relações e dar às pessoas a dignidade e o bem-estar que permitam um bom funcionamento do lugar.

Os mais antigos devem ser mediadores a fim de guiar os mais novos e os ajudar a tomar consciência de um trabalho de entreajuda no Dojo e mesmo à sua volta.

Frequentemente os principiantes são motivados por um ideal e, infelizmente, são eles também os mais expostos a um sentimento de impotência face aos mais avançados. A decepção arrasta consigo uma perca de motivação para continuar que leva a que abandonem o Dojo desiludidos! Perdemos nestes casos alguns bons futuros praticantes, tão necessários nesse mesmo Dojo. Eles são todavia as sementes do futuro…

Estes principiantes (kyu) têm assim necessidade de uma metodologia que não se limite somente ao gokyo. Alguns professores não passam destes programas técnicos o que é pena, pois isso poderá transformar-se num “parque de estacionamento”. É por isso que digo frequentemente, no Dojo TenChi, para cada um aprofundar a sua reflexão e propor soluções precisas e concertadas para a melhoria do bem-estar de todos.

Para compreender o que se passa no tatami ou no Dojo, uma breve análise do nosso ambiente se impõe. Diz-se frequentemente “O tapete é o mundo” e é bem verdade!

A Sociedade

Encontramos, um pouco por todo o lado, a discórdia. Basta ligar a rádio ou a televisão. A má utilização do poder e da liberdade reinam frequentemente em inúmeros domínios.

Vejamos as consequências:

  • Fatiga no trabalho
  • Perca de ideais
  • Gestão desleal
  • Assédio e fadiga no trabalho
  • Rejeição e medo do outro
  • Violência afectiva
  • Depressão
  • Conflitos, injustiça
  • Problemas emocionais, medo, cólera
  • Desejo de dominar (deriva das emoções)
  • Recusa de se pôr em questão para o bem de todos
  • Medo de defender posições justas e firmes para se libertar
  • Incapacidade de se exprimir sinceramente, de ser solidário sem se sacrificar.

É evidente que estes problemas sociais podem reflectir-se no Dojo ou na prática.

A alguns princípios filosóficos a ter em consideração:

  • Amar-se e aceitar-se tal como se é (sem complacência)
  • Descobrir o seu ideal, persistir nas suas escolhas
  • Dar provas de responsabilidade, de amor e generosidade (sem se sacrificar)
  • Descobrir a importância da sua consciência (e dos seus sentimentos)
  • Descobrir a importância e a relatividade do seu subconsciente (e das suas emoções)
  • Tomar consciência da sua força e do seu livre arbítrio
  • Dar provas de dignidade
  • Não se deixar corromper (noção de coragem e cobardia)
  • Aprender a aceitar o que está perante si (abrir mão)
  • Descobrir as virtudes da humildade e o sofrimento do orgulho
  • Não confundir exaltação com felicidade, serenidade com indiferença
  • Encontrar o equilíbrio entre matéria e espírito

Estes princípios podem servir de base para uma reflexão, não são limitativos, há muitos outros a descobrir…

O papel do Yudansha no Dojo

O seu papel compromete-o com a operação de mudanças profundas que deveriam levá-lo a um maior equilíbrio, físico e mental, conjugado com o respeito pelos seus ideais, tendo em conta as realidades da nossa sociedade.

Algumas reflexões para os Yudansha

Desde logo, uma motivação para construir uma sociedade sã e pacífica.

Tomar consciência de que a sabedoria e a paz no mundo não podem construir-se a não ser que os seres se libertem dos seus medos e das suas cóleras, estados de espírito que frequentemente regem os nossos comportamentos.

  • Uma vontade de adquirir a sabedoria que permita ver para-além das aparências
  • Controlar as suas emoções
  • Desenvolver um verdadeiro sentido da palavra (aprender a evitar os obstáculos da comunicação)
  • Tomar consciência da falta de escuta
  • Desenvolver o sentido da reflexão (a inteligência e o saber face ao intelecto)
  • Demonstrar iniciativa (dirigir, motivar, sem se impor)
  • Demonstrar diplomacia (falar com firmeza sem exigir)
  • Demonstrar criatividade
  • Demonstrar assiduidade e rigor (sem rigidez)
  • Demonstrar adaptação (sem se obrigar)
  • Demonstrar confiança (sem ingenuidade)
  • Dar importância ao humor (sem escárnio)
  • Dar importância à beleza, à estética e à ordem
  • Ter a atitude correcta no seu ideal
  • Ter determinação nos valores do seu ideal e da sua estética
  • Relativizar as diferentes situações que podem surgir num Dojo
  • Não aderir ao conceito de egoísmo, de cobardia (recusa de tomar posições que possam voltar-se contra o Dojo)
  • Recordar o significado de “kyozon kyoei”, amizade mútua para uma prosperidade mútua
  • Recordar que não há adversário, mas apenas parceiros que caminham juntos em direcção à excelência no espírito de “wa no seishin” que se pode traduzir por “um espírito em paz e em harmonia”
  • Aprender a falar sem tabus nem julgamentos, para encorajar a confiança mútua
  • Compreender que, apesar do nosso amor e desejo de ajuda, o aluno permanece livre e juiz das suas escolhas
  • Recordar “ichigo-ichie” (cada encontro é um tesouro já que não se repete)
  • Na descoberta de si, não se esquecer de tomar consciência das próprias dificuldades emocionais que, desde a infância, engendraram hábitos comportamentais, sofrimentos e cóleras
  • Ter atenção às suas reacções emocionais face aos problemas dos seus interlocutores, a fim de que elas não influam nos nossos julgamentos
  • Ter um interesse fraternal pelo próximo e um conhecimento dos diferentes tipos de personalidade e seus problemas emocionais
  • Ter consciência de que ajudar os outros é um acto extremamente difícil mas que deverá ser feito com o maior dos desapegos (não esperar nada em troca). É também uma capacidade de os guiar num percurso e ajudar nas suas dificuldades, propondo- lhes soluções e práticas.

Sobretudo, está atento ao teu coração mais do que todas as coisas, pois ele é o centro profundo de cada um, ele é vida interior onde tudo está em gestação ou aguarda antes de se realizar em palavras e actos.

Estas poucas reflexões, para os yudansha, são um convite e o voto de que cada um os interiorize, com vista a uma relação mais ponderada consigo próprio, o seu ambiente e o seu próximo.

Georges Stobbaerts Março de 2010

1 –Yudansha – Titulares de um grau Dan. Kodansha – Pessoas que tenham pelo menos o 4o Dan ou que desde há muito tempo tenham um grau Dan.

DO REIGI

Mestre Georges Stobbaerts com alunos de Recife.

Tudo começa e tudo acaba com um cerimonial. O verdadeiro cerimonial desenvolve uma profunda sinceridade mútua e reforça qualidades do foro da percepção intuitiva. Para descobrir o tesouro que nele se esconde, é essencial uma vigilância extrema e que sua realização seja profundamente interiorizada, apesar da simplicidade técnica de que se reveste.

Georges Stobbaerts

O cerimonial utilizado na prática das Artes Marciais tem a maior importância na tomada de consciência do breve momento de silêncio que acontece antes e depois da prática e que, em primeiro lugar, é dedicado a “Unidade do Ser”. Constitui também um sinal de respeito interior que se exterioriza por uma atitude correcta: respeito pelos outros, respeito por si próprio.

É um facto que o cerimonial e os ritos de cada país estão impregnados da tradição, psicologia e costumes próprios à sociedade humana que nasceram. Mas, em cada tradição, existem sempre convergências que são universais. Numa época como a nossa, a necessidade de compreender e sentir o outro, para além das nossas diferenças, é um primeiro passo para a compreensão mútua, que facilitará a abordagem da realidade transcendente, origem e termo de todos os continentes.

O cerimonial é, acima de tudo, um cerimonial do corpo presente no mundo, de um comportamento e de gestos em relação a certas circunstâncias da nossa vida ou do meio exterior. A harmonia pelo cerimonial, quer compreendamos a sua significaçãoplena, quer a ele nos sujeitemos por hábito, exige um acto bem executado, logo, realizado lenta e cuidadosamente (acalmando a respiração), estando presente no que fazemos, vigilantes e lúcidos, consciente do gesto, das circunstâncias e da eficácia.

É de tudo isto que o homem moderno, activo e responsável, se mostra mais incapaz. Sempre preocupado com o dia de amanhã, nunca está presente naquilo que faz. Sempre apressado, não pode sentar-se correctamente em seiza. Perdido nas suas ideias, nas suas preocupações, é um “intelectual” que já não possui corpo, tendo os sentidos fechados ao mundo. Sempre sob tensão, inquieto,  descurando o repouso, não tarda a sucumbir aos desequilíbrios da fadiga nervosa.

Ao fazer-nos sentir o corpo presente no mundo, ao ensinar-nos a retomar o controlo sobre as desarmonias e crispações decorrentes do enervamento, ao provocar em nós – isto é, nos centros reguladores da base do cérebro, centros de unidade e dos mecanismos afectivos – a harmonia, a calma e a paz, o cerimonial permite que reencontremos a nossa verdadeira natureza.

O cerimonial ajuda a libertarmo-nos dos nossos mecanismos mentais, Ao fazer, calma e lentamente, actos conscientes e gestos sentidos, ao evocar mentalmente imagens que nos dão o controlo da nossa imaginação, sintonizamos a subjectividade da nossa emissão cerebral a objectividade do corpo e do mundo. Trata-se de um verdadeiro ritual do repouso e do apaziguamento, cujo valo psíco-físico é indiscutível.

Aqui, os espiritualistas protestariam, argumentando que pretendo fazer do cerimonial um meio de reequilibrar os “nervosos”. Mas atenção, a tentação do “espiritual” é a de se fechar na sua alma angélica que esquece o corpo e o mundo, frequentemente despreszados… Trata-se de uma infidelidade à nossa natureza humana, feita de unidade psicossomática, em que a alma, forma do corpo, deve ser bem utilizada segundo uma técnica que o Oriente nos vem relembrar.

Como se sentar, como meditar, quando se é um ser “estressado”, incapaz de fazer em si o silêncio? O cerimonial, que é também é uma técnica de apaziguamento pela reeducação do controlo cerebral, é um meio de revivificação que nos abre à Graça, ao grande Sopro, na fidelidade à nossa natureza, isto é, à realidade do nosso ser.

Não poderíamos esquecer, neste efeito salutar do repouso, aquela paz de uma outra ordem, que permite a abertura ao transconsciente, maior naquele que nele acredita, mar que existe também no principiante, sem que ele o saiba e cuja falta de conhecimento não suprime a acção do Ki, desde que se coloque nas condições físicas que permitam recebê-lo.

Um bom cerimonial é o hábito de se controlar sem esforço e sem nisso pensar. Um mau cerimonial é o que nos faz perder o controlo.

O indivíduo bem controlado não é aquele que faz um esforço tenso de vontade, mas aquele que sabe querer sem esforço.

* Texto do livro REIGI escrito pelo mestre Stobbaerts.

Reigi

Livro escrito pelo Mestre Georges Stobbaerts.

“Tudo começa e tudo acaba com um cerimonial. O verdadeiro cerimonial desenvolve uma profunda sinceridade mútua e reforça qualidades do foro da percepção intuitiva. Para descobrir o tesouro que nele se esconde, é essencial uma vigilância extrema e que sua realização seja profundamente interiorizada, apesar da simplicidade técnica de que se reveste.

O cerimonial utilizado na prática das Artes Marciais tem a maior importância na tomada de consciência do breve momento de silêncio que acontece antes e depois da prática e que, em primeiro lugar, é dedicado a “Unidade do Ser”. Constitui também um sinal de respeito interior que se exterioriza por uma atitude correcta: respeito pelos outros, respeito por si próprio.”

Editora: TenChi International
Autor: Georges Stobbaerts
Ano: 2000
Número de páginas: 64

A Visão Perfeita

Georges Stobbaerts cuidando do Tokonoma do Dojo TenChi.

«Eles têm olhos mas não vêem.» Jeremias 5.21
«Abre os olhos e olha, verás o teu rosto em todos os rostos.
Tem atenção e escuta, ouvirás a tua própria voz em todas as vozes.»
Khalil Gibran in Areia e Espuma

“O meu amigo, o cirurgião Dr. Durix, especialista em oftalmologia, dizia-me que existia na Amazônia um peixe com quatro olhos; o Anableps anableps. Este peixe tem dois olhos e cada um dos seus olhos tem duas pupilas, uma superior e outra inferior. Desloca-se sempre à superfície da água, ficando o nível desta a meio dos olhos. Com a parte superior ele vê o que se passa na atmosfera, tal como o homem e os outros animais terrestres e, com a parte inferior, vê o que se passa na água, debaixo da superfície, como os outros peixes e animais aquáticos.

O Dr. Durix dizia que tudo está preparado neste olho: as curvaturas da córnea, as curvaturas do cristalino, a própria forma do olho em si, para se adaptar às diferenças de refracção entre o meio exterior e o meio aquático. Este é, assim, um olho de imagem global.

Esta descrição de um olho quase perfeito fez-nos pensar, a Claude Durix, Pierre Delorme e a mim mesmo, que esta seria a visão ideal para todos nós. Nas artes marciais (Budo) e também no Yoga, a visão de certas grandes organizações ou mesmo grandes federações, não fica senão por regulamentos técnicos ou regulações governamentais, por vezes limitados a interesses pessoais. A maior parte de nós, muito frequentemente, não se orienta para a vida. Sobrevoamo-la, dizia Chiara Lubich, e é assim que se perdem as virtudes destas artes.

As artes marciais seguiram felizmente a evolução do mundo. Sabemos que as suas origens se perdem na noite dos tempos onde os homens combatiam para sobreviver. A sua razão de ser inicial perdeu-se felizmente… No Japão como na Índia, transcendeu-se o combate para, em seu lugar, criar uma Via orientada para valores espirituais que transformaram as técnicas brutais numa Arte cujo objectivo é a busca de si mesmo. Todas estas técnicas se tornaram assim num suporte de meditação. Este combate tornou- se puramente espiritual ao tomarmos consciência de que o verdadeiro inimigo éramos nós próprios, na ilusão do ego que nos impede de ver a nossa verdadeira natureza. O sabre e a meditação não são mais do que uma só coisa, «ken zen ichi nyo». O Budo tornou-se uma arte de não-violência, procurando a paz e a serenidade, dando um verdadeiro sentido à vida.

Hoje em dia devemos estar atentos. Devemos olhar para a mundialização, que tem um lado positivo mas também um negativo, que se apropriou destas artes marciais, tal como da via do Yoga, para as mediatizarem e comercializarem, desvirtuando infelizmente o seu verdadeiro espírito, amplificando o lado primário e complexo do homem — com todas as suas aspirações e a agressividade que vem da violência original, quer dizer a violência das origens e do medo do outro. Hoje em dia devemos vencer o outro a qualquer preço.

Se as artes do Budo são feitas deste laço ancestral que liga o Homem à violência, elas souberam no entanto, com inteligência, durante o seu longo percurso, harmonizar esta difícil relação pela observação necessária para a aquisição de um gesto correcto, através do físico e do mental, que exige tomadas de consciência de si, mas também do outro. Isto é muito necessário ainda hoje pois infelizmente não resolvemos o problema da agressividade e da violência. A violência pode perfeitamente deslocar-se. Ela é móvel, na prática como nos estádios… ou no mundo, através das guerras perpétuas que conhecemos demasiado bem.

Devíamos tomar consciência de uma maneira mais profunda de tudo isto. Não fiquemos pela superfície das coisas, dos acontecimentos. Sejamos como o Anableps anableps… Tomemos consciência do externo e do interno, do visível e do invisível. A profundidade está ligada ao olhar que lançamos sobre o nosso ser autêntico em cada instante da vida.

Não devemos esquecer que durante a pratica o Dojo não é um lugar para pensadores. A prática é sobretudo feita de alegria e o resto segue o seu curso. Se o apelo do silêncio ressoa em nós, então podemos harmonizar a sensação, o sentimento, na experiência de estar presente na Presença. Não é isto a incarnação do movimento que nos quer ensinar a Via?

A harmonia do corpo e do espírito não é um conceito nem uma técnica de aperfeiçoamento inventada. É um princípio essencial de nossa qualidade de se ser humano. Um princípio que nos permite coordenar as nossas percepções sensoriais, o nosso corpo e o nosso espírito. Estar em harmonia connosco mesmos é também reatar a nossa ligação ao universo, ao mundo, ao outro, aos outros…”

Não esqueçam o olhar do Anableps anableps…!

Georges Stobbaerts, Outubro de 2010.